Daniel e Apocalipse
Daniel 7 — Os quatro animais
VERSÍCULO 1. No primeiro ano de Belsazar, rei da Babilônia, teve Daniel um sonho e visões ante seus olhos, quando estava no seu leito; escreveu logo o sonho e relatou a suma de todas as coisas. DAP 101.1
Este é o mesmo Belsazar mencionado no capítulo 5. Logo, do ponto de vista cronológico, este capítulo sucede ao quinto; mas o aspecto cronológico foi deixado de lado a fim de que a parte histórica do livro ficasse independente e a parte profética, que iniciamos agora, não fosse interrompida por escritos dessa natureza. DAP 101.2
VERSÍCULO 2. Falou Daniel e disse: Eu estava olhando, durante a minha visão da noite, e eis que os quatro ventos do céu agitavam o mar Grande. 3. Quatro animais, grandes, diferentes uns dos outros, subiam do mar. DAP 101.3
Toda a linguagem das Escrituras deve ser entendida de maneira literal, a menos que haja algum bom motivo para supor que seja figurada. E tudo aquilo que é figurado deve ser interpretado pelo literal. O versículo 17 deixa claro que a linguagem usada neste capítulo é simbólica, pois diz: “Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis que se levantarão da terra”. E para mostrar que a alusão é a reinos, não a reis individuais, o anjo continuou: “Mas os santos do Altíssimo receberão o reino” (v. 18). Além disso, na explicação do versículo 23, o anjo disse: “O quarto animal será um quarto reino na Terra”. Logo, os animais são símbolos de quatro grandes reinos. As circunstâncias nas quais surgiram e o meio usado para sua ascensão, conforme a descrição da profecia, também são simbólicos. Os símbolos apresentados são: quatro ventos, o mar, quatro grandes animais, dez chifres e outro chifre que tinha olhos e boca, o qual se levantou para guerrear contra Deus e Seu povo. Agora precisamos averiguar o que eles significam. DAP 101.4
Em linguagem simbólica, vento quer dizer luta, comoção política e guerra. Jeremias 25:31, 32 diz: DAP 101.5
“Um tumulto ressoa até os confins da Terra, pois o Senhor faz acusações contra as nações, e julga toda a humanidade: ele entregará os ímpios à espada, declara o Senhor. Assim diz o Senhor: ‘Vejam! A desgraça está se espalhando de nação em nação; uma terrível tempestade [whirlwind, na KJV — redemoinho de vento] se levanta desde os confins da Terra’. Naquele dia, os mortos do SENHOR estarão em todo o lugar, de um lado ao outro da Terra” (NVI). DAP 101.6
Nessa passagem, o profeta fala de uma controvérsia que o Senhor terá com todas as nações, na qual os ímpios serão entregues à espada e os mortos pelo Senhor se estenderão de uma extremidade a outra da Terra. O conflito e a comoção que produzem toda essa destruição são chamados de terrível tempestade, ou, como diz a versão King James, de grande vendaval ou redemoinho de vento. DAP 101.7
O fato de vento significar conflito e guerra se torna mais evidente quando a visão em si é analisada. Como resultado da luta dos ventos, reinos surgem e caem; e tais eventos ocorrem mediante conflito político. DAP 103.1
A definição bíblica de mar, ou águas, quando usado como símbolo, é povos, nações e línguas. Confira como prova disso Apocalipse 17:15, onde tal significado é expressamente declarado. DAP 103.2
A definição do símbolo dos quatro animais é apresentada por Daniel perto do fim da visão. O versículo 17 diz: “Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis que se levantarão da Terra”. Assim, o campo da visão se abre de maneira definitiva diante de nós. DAP 103.3
VERSÍCULO 4. O primeiro era como leão e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, foi levantado da terra e posto em dois pés, como homem; e lhe foi dada mente de homem. DAP 103.4
Uma vez que os quatro animais representam quatro reis ou reinos, perguntamos: “Quais quatro? Por onde começamos a contagem?” Esses animais não surgem todos de uma vez, mas de maneira consecutiva, uma vez que são chamados de primeiro, segundo, etc. E o último continua em existência no momento em que todas as cenas terrenas chegam ao fim mediante o juízo final. Do tempo de Daniel até o fim da história deste mundo, haveria apenas quatro reinos universais, conforme aprendemos com a grande estátua do sonho de Nabucodonosor no capítulo 2. Daniel ainda vivia sob o domínio do reino que havia declarado ser a cabeça de ouro, em sua interpretação do sonho do rei, cerca de 65 anos antes. Logo, o primeiro animal desta visão deve denotar o mesmo que a cabeça de ouro da grande estátua, a saber, o reino de Babilônia, e os outros animais, os reinos seguintes mostrados na estátua. Mas se essa visão abrange, em essência, o mesmo tema da estátua do capítulo 2, é possível indagar por que ela foi dada; por que a visão do capítulo 2 não bastou? Respondemos: o tema é repetido vez após vez para apresentar características adicionais, acrescentando fatos e atributos novos. É assim que temos “preceito sobre preceito”. Nesta visão, os governos terrenos são mostrados segundo sua representação à luz do Céu. Seu verdadeiro caráter é revelado por meio do símbolo de feras selvagens e violentas. DAP 103.5
A princípio, o leão tinha asas de águia, representando a rapidez das conquistas de Babilônia durante o reinado de Nabucodonosor. No momento da visão, uma mudança havia acontecido. As asas tinham sido arrancadas. Ele não voava mais como uma águia sobre a vítima. A ousadia e o espírito do leão haviam desaparecido. Uma “mente de homem” [“coração de homem, na KJV], fraca, temerosa e tímida, tomara seu lugar. Foi exatamente esse o caso da nação durante os anos finais de sua história, pois se tornou fraca e efeminada por causa da riqueza e devassidão. DAP 103.6
VERSÍCULO 5. Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou sobre um dos seus lados; na boca, entre os dentes, trazia três costelas; e lhe diziam: Levanta-te, devora muita carne. DAP 105.1
Assim como na grande estátua do capítulo 2, nesta série de símbolos, percebemos uma deterioração acentuada quando passamos de um reino para o outro. O peito e os braços de prata eram inferiores ao ouro da cabeça. O urso era inferior ao leão. A Medo-Pérsia ficou atrás de Babilônia em riqueza e esplendor, bem como no brilhantismo de sua carreira. E agora chegamos a detalhes adicionais acerca desse poder. O urso se levantou sobre um de seus lados. Esse reino era formado por duas nacionalidades, os medos e os persas. O mesmo fato é representado pelos dois chifres do carneiro do capítulo 8. Acerca desses chifres, afirma-se que o mais alto surgiu por último; e sobre o leão, que ele se levantou sobre um dos seus lados. Isso se cumpriu com a parte persa do reino, que surgiu por último, mas alcançou maior proeminência, tornando-se a influência controladora da nação (ver com. de Daniel 8:3). É possível que as três costelas signifiquem as três províncias de Babilônia, Lídia e Egito, que foram mais subjugadas e oprimidas por esse poder. O fato de dizerem “Levanta-te, devora muita carne” se refere naturalmente ao estímulo concedido aos medos e persas, ao dominarem tais províncias, para planejar e empreender conquistas mais vastas. O caráter do poder é bem representado por um urso. Os medos e persas eram cruéis e vorazes, roubavam e saqueavam o povo. Conforme já mencionado na exposição do capítulo 2, este reino começou com a conquista de Babilônia por Ciro em 538 a.C. e continuou até a batalha de Gaugamela em 331 a.C., por um período de 207 anos. DAP 105.2
VERSÍCULO 6. Depois disto, continuei olhando, e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; tinha também este animal quatro cabeças, e foi-lhe dado domínio. DAP 105.3
A Grécia, o terceiro reino, é representada por este símbolo. Se asas sobre o leão significam rapidez de conquista, o mesmo acontece aqui. O leopardo já é um animal bastante ágil, mas isso não foi suficiente para representar a trajetória da nação que ele simbolizava nesse aspecto. Era preciso ter asas, além de tudo. Duas asas, o número dado ao leão, não bastavam. Eram necessárias quatro. Isso denotava agilidade de movimentos sem precedentes. Confirmamos que essa é a verdade histórica acerca do reino grego. As conquistas da Grécia, sob a liderança de Alexandre, não encontram paralelo em seu caráter súbito e em rapidez nos anais da história. DAP 105.4
Rollin, em Ancient History, vol. 15, seção 2, faz esta breve síntese das marchas de Alexandre: DAP 105.5
“Da Macedônia ao Ganges, rio do qual Alexandre quase se aproximou, contam-se pelo menos 1.100 léguas [5.280 km]. Acrescentem-se a isso as diversas voltas nas marchas de Alexandre; primeiro, da extremidade da Cilícia, onde a batalha de Isso foi travada, até o templo de Júpiter Amon na Líbia, e seu retorno daí para Tiro, totalizando uma jornada de no mínimo trezentas léguas [1.440 km] — uma distância padrão em suas idas e vindas em diferentes lugares. Chega-se à conclusão de que, em menos de oito anos, Alexandre fez seu exército marchar mais de 1.700 léguas [ou mais de 8.160 quilômetros], sem incluir o retorno para Babilônia.” DAP 105.6
“Tinha também este animal quatro cabeças”. O império grego manteve sua unidade por pouco mais do que o período de vida de Alexandre. Quinze anos depois de sua brilhante carreira terminar com uma febre provocada por excesso de bebedeira, o império foi dividido entre seus principais generais. Cassandro ficou com a Macedônia e o oeste da Grécia; Lisímaco ficou com a Trácia e partes da Ásia no Helesponto e em Bósforo no norte; Ptolomeu recebeu o Egito, a Lídia, a Arábia, a Palestina e a Celessíria no sul; Seleuco ficou com a Síria e com o restante dos domínios de Alexandre no oriente. Tais divisões foram simbolizadas pelas quatro cabeças do leopardo (308 a.C.). DAP 108.1
Assim as palavras do profeta se cumpriram com precisão. Uma vez que Alexandre não deixou sucessor, por que o imenso império não se partiu em incontáveis fragmentos minúsculos? Por que em apenas quatro partes, não em mais? Porque a profecia dissera que seriam apenas quatro. O leopardo tinha quatro cabeças, o bode contava com quatro chifres, e o reino teria quatro divisões; e assim foi (confira em maiores detalhes no capítulo 8). DAP 108.2
VERSÍCULO 7. Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava, e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele e tinha dez chifres. DAP 108.3
A inspiração não encontra animal na natureza que sirva de base como símbolo para representar o poder aqui ilustrado. Nenhum acréscimo de patas, cabeças, chifres, asas, escamas, dentes ou unhas a qualquer fera da natureza seria suficiente. Esse poder era diferente de todos os outros e seu símbolo fica totalmente sem descrição. DAP 108.4
O versículo 7, que acaba de ser citado, tem conteúdo suficiente para um livro inteiro, mas somos compelidos a abordá-lo com maior brevidade aqui, pois a história completa se encontra muito além do espaço que esta curta exposição é capaz de permitir. Este animal corresponde, é claro, à quarta divisão da grande estátua — as pernas de ferro. Na análise de Daniel 2:40, apresentamos alguns motivos para aceitarmos que esse poder seja Roma. Os mesmos motivos se aplicam à presente profecia. Com quanta precisão Roma corresponde à parte de ferro da estátua! E com quanta precisão se adequa ao animal que nos é apresentado! No temor e terror que inspirava, bem como na força descomunal, o mundo nunca viu algo parecido. Devorava como se tivesse dentes de ferro e quebrava em pedaços. Moía todas as nações até o pó debaixo dos audaciosos pés. Tinha dez chifres, que o versículo 24 afirma serem dez reis ou reinos que surgiriam desse império. Conforme já mencionado no capítulo 2, Roma foi dividida nos dez reinos a seguir: hunos, ostrogodos, visigodos, francos, vândalos, suevos, burgúndios, hérulos, anglo-saxões e lombardos. Desde então, tais divisões são conhecidas como os dez reinos do império romano (351-483 d.C.). Confira os comentários sobre Daniel 2:41-42; leia também o Anexo III. DAP 108.5
VERSÍCULO 8. Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência. DAP 110.1
Daniel observou os chifres. Indícios de um movimento estranho apareceu entre eles. Um chifre pequeno (pequeno a princípio, mas depois mais robusto do que os outros) começou a forçar sua expansão entre eles. Não se contentou em encontrar tranquilamente um lugar para si e ocupá-lo; desejou derrubar alguns dos outros e usurpar o lugar deles. Três reinos foram arrancados perante ele. Esse chifre pequeno, conforme teremos condições de comentar em maiores detalhes posteriormente, foi o papado. Os três chifres arrancados diante dele foram os hérulos, os ostrogodos e os vândalos. E foram arrancados porque se opuseram às arrogantes pretensões da hierarquia papal e à supremacia do bispo de Roma na igreja. DAP 110.2
“Neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência” — os olhos, símbolo adequado de astúcia, sagacidade, perspicácia e visão da hierarquia papal; a boca falando com insolência, uma representação apropriada das arrogantes pretensões dos bispos de Roma. DAP 110.3
VERSÍCULO 9. Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de Dias Se assentou; Sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça, como a pura lã; o Seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo ardente. 10. Um rio de fogo manava e saía de diante Dele; milhares de milhares O serviam, e miríades de miríades estavam diante Dele; assentou-se o tribunal, e se abriram os livros. DAP 110.4
É impossível encontrar uma descrição mais sublime da mais sublime de todas as cenas em língua portuguesa. Mas não são apenas as imagens grandiosas e elevadas aqui introduzidas que deveriam chamar nossa atenção; a natureza da cena em si requer a mais grave consideração. O juízo é colocado em cena e, sempre que ele é mencionado, deve exercer atração irresistível sobre todas as mentes, pois todos se interessam pelas questões eternas. DAP 110.5
Devido a uma infeliz tradução no verso 9, [na versão King James], uma ideia equivocada pode ser transmitida. As palavras “cast down” [lançados abaixo — “postos”, na ARA] vêm de um termo que no original significa exatamente o oposto: pôr, estabelecer. Gesenius define da seguinte maneira a palavra רְמָה [r’mah]: “Aram. 1. Lançar, jogar, Daniel 3:20, 21, 24; 6:17. 2. Estabelecer, colocar, por exemplo, tronos, Daniel 7:9. Comparar Apocalipse 4:2, θρόνος ἔκειτο, com יָרָה , acepção 2”. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon [Léxico analítico hebraico e caldeu], de Davidson, também dá a essa palavra a definição de “estabelecer, colocar”, e cita Daniel 7:9 como exemplo do uso da palavra nesse sentido. A razão pela qual a versão inglesa usou “cast down”, com esse sentido de “lançar ao chão”, se encontra, talvez, na seguinte nota encontrada na Cottage Bible: “V. 9. The thrones were cast down [Os tronos foram lançados abaixo, ou ao chão]. Wintle, ‘Foram postos’. O mesmo afirma Boothroyd. Mas as duas traduções transmitem o mesmo significado. Os asiáticos não têm cadeiras, nem tamboretes; mas para receber pessoas de posição, eles ‘lançam ao chão’ [cast down] ou ‘colocam’ almofadas ao redor do ambiente para servir de assento. Ao que parece, a passagem alude a essa prática. Confira Mateus 19:28 e Apocalipse 20:4”. O Dr. Clarke diz que a palavra “pode ser traduzida por erigidos — razão por que a Vulgata traduziu como positi sunt [foram postos], bem como todas as outras versões”. A Septuaginta traz ἐτέθησαν (etethesan), cuja definição é “colocar, pôr, posicionar; estabelecer; erigir”. Os tronos não se referem a tronos terrenos, os quais serão derrubados, ou lançados por terra, no dia final, mas a tronos de julgamento, que são “postos” ou posicionados no tribunal do Deus Altíssimo pouco antes do fim. DAP 110.6
O “Ancião de Dias”, Deus Pai, assume o trono do juízo. Note a descrição de Sua pessoa. Aqueles que creem na impessoalidade de Deus são obrigados a admitir que, nesta passagem, Ele é descrito como um ser pessoal; mas se consolam dizendo que se trata da única descrição do tipo na Bíblia. Não admitimos a última afirmação, mas, caso fosse verdadeira, uma única descrição dessa natureza não seria tão fatal para a teoria quanto se fosse repetida diversas vezes? Os milhares de milhares que O servem e as miríades de miríades que estão diante Dele não são pecadores em frente ao trono do juízo, mas, sim, seres celestiais que ministram perante Deus, cumprindo Sua vontade. A compreensão desses versículos envolve o entendimento do tema do santuário, e recomendamos ao leitor que leia obras a esse respeito. O fim da ministração de Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote, no santuário celestial, é a obra de julgamento aqui introduzida. Trata-se de um juízo investigativo. Os livros se abrem e o caso de cada um aparece para ser examinado no grande tribunal, a fim de que se possa determinar de antemão quem receberá a vida eterna quando o Senhor vier para concedê-la a Seu povo. João, conforme o relato de Apocalipse 5, teve uma visão do mesmo lugar e viu o mesmo número de seres celestiais envolvidos com Cristo na obra do juízo investigativo. Olhando para dentro do santuário (conforme descobrimos com base em Apocalipse 4), no capítulo 5:11 ele diz: “Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares”. DAP 111.1
Veremos adiante, ao estudarmos Daniel 8:14, que essa obra solene está ocorrendo agora mesmo no santuário celestial. DAP 111.2
VERSÍCULO 11. Então, estive olhando, por causa da voz das insolentes palavras que o chifre proferia; estive olhando e vi que o animal foi morto, e o seu corpo desfeito e entregue para ser queimado. 12. Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia, foi-lhes dada prolongação de vida por um prazo e um tempo. DAP 111.3
Há pessoas que creem em um milênio de triunfo do evangelho e reinado da justiça sobre todo o mundo antes da volta do Senhor; outros ainda acreditam em um tempo de graça depois que Jesus voltar e em um milênio misto, no qual os justos imortais proclamarão o evangelho a pecadores mortais, dirigindo-os para o caminho da salvação. Mas esses dois sistemas de erro são completamente demolidos nos versículos que se descortinam à nossa frente. DAP 111.4
1. O quarto animal terrível continua sem mudança de caráter, e o chifre pequeno segue proferindo suas blasfêmias, mantendo seus milhões de adeptos nas cadeias de uma superstição cega, até a besta ser entregue ao fogo. Não se trata, portanto, aqui de sua conversão, mas, sim, de sua destruição (ver 2 Tessalonicenses 2:8). DAP 112.1
2. A vida do quarto animal não se prolonga após o fim de seu domínio, como foi o caso dos animais anteriores. O domínio deles foi retirado, mas a vida se prolongou por um tempo. O território e os súditos do reino babilônico continuaram a existir, muito embora tenham passado a ser súditos dos persas. O mesmo se pode dizer do império persa com relação à Grécia, e da Grécia com respeito a Roma. Mas o que vem após o quarto reino? Nenhum governo ou estado no qual os mortais desempenham qualquer parte. Sua trajetória termina no lago de fogo e não tem existência além disso. O leão foi absorvido pelo urso; o urso, pelo leopardo; o leopardo, pelo quarto animal; e o quarto animal pelo quê? Não por outro animal, mas foi jogado ao lago de fogo, em cuja destruição permanece até os seres humanos sofrerem a segunda morte. Logo, que ninguém fale sobre tempo de graça ou milênio misto após a volta do Senhor. DAP 112.2
O advérbio então, na frase: “Então, estive olhando, por causa da voz das insolentes palavras que o chifre proferia”, etc., parece se referir a algum momento específico. A obra do juízo investigativo é introduzida nos versículos anteriores. Pode-se deduzir, a partir desse versículo, que, enquanto essa obra está sendo realizada e logo antes da destruição desse poder e de sua entrega ao fogo ardente, o chifre pequeno profere palavras insolentes contra o Altíssimo. Não temos ouvido tais palavras ao longo dos últimos anos? Veja os decretos do Concílio do Vaticano de 1870. O que poderia ser mais blasfemo do que atribuir infalibilidade a um mortal? Todavia, nesse ano o mundo contemplou o espetáculo de um concílio ecumênico reunido com o propósito deliberado de decretar que o ocupante do trono papal, o homem da iniquidade, possui essa prerrogativa divina e, portanto, não pode errar. Haveria algo mais presunçoso e blasfemo? Não seria essa a voz das palavras insolentes que o chifre proferiu? Não está esse poder pronto para o fogo e próximo de seu fim? DAP 112.3
VERSÍCULO 13. Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-Se ao Ancião de Dias, e O fizeram chegar até Ele. 14. Foi-Lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas O servissem; o Seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o Seu reino jamais será destruído. DAP 112.4
A cena descrita nessa passagem não é o segundo advento de Cristo a esta Terra, a menos que o Ancião de Dias esteja neste planeta, pois se trata de uma vinda ao Ancião de Dias. Ali, na presença do Ancião de Dias, Ele recebe um reino, domínio e glória. O Filho do Homem recebe o reino antes de Seu retorno à Terra (ver Lucas 19:10-12 em diante). Portanto, esta é uma cena que acontece no templo celestial e está fortemente conectada à que inicia nos versículos 9 e 10. Ele recebe o reino ao fim de Sua obra sacerdotal no santuário. Os povos, as nações e as línguas que O servirão serão os salvos (Apocalipse 21:24), não as nações ímpias da Terra — estas serão despedaçadas no segundo advento. Alguns dentre todas as nações, tribos e reinos da Terra se encontrarão afinal no reino de Deus, a fim de ali servi-Lo com alegria e júbilo para todo o sempre. DAP 112.5
VERSÍCULO 15. Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi alarmado dentro de mim, e as visões da minha cabeça me perturbaram. 16. Cheguei-me a um dos que estavam perto e lhe pedi a verdade acerca de tudo isto. Assim, ele me disse e me fez saber a interpretação das coisas: 17. Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis que se levantarão da terra. 18. Mas os santos do Altíssimo receberão o reino e o possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade. DAP 113.1
Nós deveríamos estar tão ansiosos quanto Daniel para compreender a verdade de tudo isso. E sempre que buscamos com a mesma sinceridade de coração, descobrimos que o Senhor continua tão disposto hoje quanto nos dias do profeta a nos conduzir ao conhecimento correto dessas importantes verdades. Os animais e os reinos que eles representam já foram explicados. Acompanhamos o profeta no decorrer dos acontecimentos até a destruição completa do quarto e último animal, até a subversão final de todos os governos terrenos. O que vem em seguida? O versículo 18 nos conta: “Os santos do Altíssimo receberão o reino”. Os santos! Todos aqueles tidos em baixa estima por este mundo, desprezados, reprovados, perseguidos e excluídos; aqueles considerados os menos prováveis dentre todas as pessoas para alcançar sua esperança. São esses que receberão o reino e o possuirão para sempre. A usurpação e o domínio inadequado dos ímpios chegarão ao fim. A herança perdida será redimida. A paz será restaurada às fronteiras destruídas e a justiça reinará por sobre toda a expansão da Terra renovada. DAP 113.2
VERSÍCULO 19. Então, tive desejo de conhecer a verdade a respeito do quarto animal, que era diferente de todos os outros, muito terrível, cujos dentes eram de ferro, cujas unhas eram de bronze, que devorava, fazia em pedaços e pisava aos pés o que sobejava; 20. e também a respeito dos dez chifres que tinha na cabeça e do outro que subiu, diante do qual caíram três, daquele chifre que tinha olhos e uma boca que falava com insolência e parecia mais robusto do que os seus companheiros. DAP 113.3
Daniel teve uma compreensão tão clara quanto aos três primeiros animais da série que não teve dificuldade nenhuma em relação a eles. Mas ficou pasmo diante do quarto animal, tão contrário às leis da natureza e temível. Com efeito, quanto mais avançamos na linha do tempo, mais é necessário se afastar da natureza para formar símbolos que representem com precisão os governos degenerados desta Terra. O leão pertence à natureza; mas precisou ter o acréscimo artificial de duas asas para representar o reino de Babilônia. Também encontramos o urso na natureza. Como símbolo da Medo-Pérsia, porém, uma ferocidade anormal precisou ser denotada por meio da inserção de três costelas em sua boca. De igual modo, o leopardo é um animal da natureza; mas, a fim de representar a Grécia de maneira apropriada, há um afastamento da natureza no que diz respeito às asas e ao número de cabeças. Contudo, a natureza não provê nenhum símbolo apropriado para ilustrar o quarto reino. Um animal cuja semelhança nunca foi vista é usado; uma besta temível e terrível, com unhas de bronze e dentes de ferro, tão cruel, voraz e selvagem que, pelo simples amor à opressão, devorava, despedaçava e pisoteava suas vítimas. DAP 113.4
Tudo isso se mostrou fenomenal para o profeta, mas algo ainda mais extraordinário estava por vir. Um chifre pequeno apareceu e, seguindo a mesma natureza da besta de onde surgiu, derrubou três de seus companheiros. E eis que o chifre tinha olhos, não os olhos incultos de um animal, mas os olhos sagazes, astutos e inteligentes de um ser humano! E o mais estranho ainda: tinha uma boca que falava com insolência, proferindo prerrogativas absurdas e arrogantes. Não é de espantar que o profeta tenha feito perguntas especiais sobre esse monstro, com instintos tão sinistros e com costumes e modo de agir tão diabólicos. Os versículos seguintes apresentam algumas especificações acerca do chifre pequeno, as quais permitem que o estudioso das profecias faça uma aplicação desse símbolo sem risco de errar. DAP 114.1
VERSÍCULO 21. Eu olhava e eis que este chifre fazia guerra contra os santos e prevalecia contra eles, 22. até que veio o Ancião de Dias e fez justiça aos santos do Altíssimo; e veio o tempo em que os santos possuíram o reino. DAP 114.2
A ira fora do comum desse chifre pequeno contra os santos atraiu de modo especial a atenção de Daniel. A ascensão dos dez chifres, ou a divisão de Roma em dez reinos, entre os anos 351 e 483 d.C., já foi mencionada (confira o comentário sobre Daniel 2:41). Uma vez que esses chifres denotam reinos, o chifre pequeno também deve representar um reino, mas não da mesma natureza, pois era diferente dos outros, que eram reinos políticos. E agora precisamos investigar se algum reino surgiu dentre os dez do império romano desde 483 d.C., e que foi distinto de todos eles; se houve, qual foi. A resposta é: sim, o reino espiritual do papado. Essa resposta se encaixa em todos os detalhes do símbolo e é fácil comprová-la. Além disso, nada mais se enquadra com tamanha precisão. Confira as especificações mencionadas em maiores detalhes no versículo 23. DAP 114.3
Daniel contemplou esse chifre guerreando contra os santos. O papado travou esse tipo de batalha? Cinquenta milhões de mártires, cuja voz é como o som de muitas águas, respondem que sim. Veja a cruel perseguição aos valdenses, albigenses e protestantes em geral que o poder papal exerceu. Há bons motivos para afirmar que as perseguições, os massacres e as guerras religiosas incitadas pela igreja e o bispo de Roma ocasionaram o derramamento de muito mais sangue dos santos do Altíssimo que toda forma de inimizade, hostilidade e perseguição de professos pagãos desde a fundação do mundo. DAP 114.4
No versículo 22, três acontecimentos consecutivos parecem ser apresentados. Daniel, olhando para o futuro desde o momento em que o chifre pequeno se encontrava no auge de seu poder até o fim definitivo do longo embate entre os santos e Satanás com todos os seus agentes, observa três acontecimentos proeminentes que servem como marcos ao longo do caminho: 1) A vinda do Ancião de Dias, isto é, a posição que Jeová assume no início da cena de julgamento descrita nos versículos 9 e 10. 2) O juízo que é “dado [...] aos santos” (ARC), ou seja, o momento em que os santos se assentam com Cristo para julgar por mil anos, após a primeira ressurreição (Apocalipse 20:1-4), reservando aos ímpios o castigo que merecem por seus pecados. Então os mártires se assentarão para julgar o grande poder perseguidor anticristão que, na época de sua provação, os caçava como se fossem animais do deserto, derramando o sangue deles como água. 3) O tempo em que os santos possuirão o reino; isto é, o momento em que tomarão posse da nova Terra. Então o último vestígio da maldição, do pecado e dos pecadores, raiz e ramo serão eliminados. O território há tanto tempo injustamente governado pelos poderes ímpios da Terra, os inimigos do povo de Deus, será concedido aos justos e a eles pertencerá para todo o sempre (1 Crônicas 6:2-3; Mateus 25:34). DAP 114.5
VERSÍCULO 23. Então, ele disse: O quarto animal será um quarto reino na Terra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda a Terra, e a pisará aos pés, e a fará em pedaços. 24. Os dez chifres correspondem a dez reis que se levantarão daquele mesmo reino; e, depois deles, se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. 25. Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo e cuidará em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo. 26. Mas, depois, se assentará o tribunal para lhe tirar o domínio, para o destruir e o consumir até ao fim. DAP 115.1
Aqui encontramos maiores detalhes acerca do quarto animal e do chifre pequeno. DAP 115.2
Talvez já se tenha dito o bastante acerca do quarto animal (Roma) e dos dez chifres, ou dez reinos, que dele surgiram. É o chifre pequeno que demanda atenção especial agora. Conforme destacado no versículo 8, o cumprimento da profecia acerca desse chifre se encontra na ascensão e obra do papado. Portanto, é uma questão tanto de interesse quanto de importância indagar quais foram as causas que levaram ao desenvolvimento desse poder anticristão. DAP 115.3
Os primeiros pastores ou bispos de Roma desfrutavam um respeito proporcional à posição da cidade em que residiam; ao longo dos primeiros séculos da era cristã, Roma era a cidade mais vasta, rica e poderosa do mundo. Era a sede do império, a capital das nações. “Todos os habitantes da Terra pertencem a ela”, disse Juliano; e Claudiano declarou que ela era a “fonte das leis”. “Se Roma é a rainha das cidades, então por que seu pastor não deveria ser o rei dos bispos?” — essa foi a linha de raciocínio que os pastores romanos adotaram. “Por que a igreja romana não deveria ser a mãe da cristandade? Por que todas as nações não deveriam ser suas filhas e, sua autoridade, a lei soberana? Era fácil”, diz D’Aubigné, de quem citamos essas palavras (History of the Reformation [História da Reforma], vol. 1, cap. 1), “ao ambicioso coração humano pensar dessa forma. E foi isso que a ambiciosa Roma fez”. DAP 115.4
Os bispos das diferentes partes do império romano sentiam prazer em dispensar ao bispo de Roma parte da honra que a rainha das cidades recebia das nações da Terra. A princípio, a homenagem assim prestada não subentendia nenhum tipo de dependência. “Mas”, continua D’Aubigné, “o poder usurpado aumenta como uma avalanche. Admoestações, a princípio apenas fraternas, logo se transformaram em ordens absolutas nas mãos do pontífice. Os bispos do ocidente foram favoráveis a essa usurpação dos pastores romanos, por inveja dos bispos orientais ou por preferirem se submeter à supremacia de um papa a ter que fazê-lo em relação ao domínio de um poder temporal”. DAP 115.5
Tais eram as influências que cercavam o bispo de Roma, e tudo tendia para sua rápida elevação ao trono supremo do cristianismo. O quarto século, porém, testemunhou a colocação de um obstáculo no caminho desse ambicioso sonho. Ário, sacerdote da paróquia da antiga e influente igreja de Alexandria, espalhou sua doutrina pelo mundo, causando uma controvérsia tão ferrenha dentro da igreja cristã que um concílio geral foi convocado em Niceia pelo imperador Constantino no ano 325 d.C., a fim de analisá-la e fazer os devidos ajustes. Ário defendia que “o Filho era total e essencialmente distinto do Pai; que era um dos primeiros e mais nobres seres que o Pai criara do nada. Por meio de uma operação subordinada ao Pai Todo-poderoso, teria formado o Universo. Logo, era inferior ao Pai tanto em natureza quanto em dignidade”. Essa opinião foi condenada pelo concílio, o qual decretou que Cristo era um com o Pai e da mesma substância que Este. Por isso, Ário foi exilado em Ilíria, e seus seguidores foram obrigados a concordar com o credo elaborado nessa ocasião (Mosheim, séc. 4, parte 2, cap. 4; Stanley, History of the Eastern Church [História da Igreja Oriental], p. 239). DAP 116.1
Todavia, o conflito não foi resolvido de forma tão sumária e continuou a agitar o mundo cristão por séculos. Os arianos de todas as partes se tornaram amargos inimigos do papa e da Igreja Católica Romana. Tais fatos deixam claro que a disseminação do arianismo conteria a influência dos católicos; e o domínio de Roma e da Itália por pessoas de convicção ariana seria fatal para a supremacia do bispo católico. Mas a profecia havia declarado que esse chifre subiria ao poder supremo e, ao alcançar tão posição, dominaria três reis. DAP 116.2
Há divergência de opinião quanto aos poderes específicos que foram subjugados por interesse do papado. A esse respeito, a observação seguinte de Albert Barnes parece muito pertinente: DAP 116.3
“Por causa da confusão existente durante o esfacelamento do império romano e dos relatos imperfeitos dos acontecimentos que ocorreram durante a ascensão do poder papal, não é de se estranhar a dificuldade de encontrar eventos distintamente registrados que correspondam a um cumprimento preciso e absoluto de todos os aspectos da visão. No entanto, é possível identificar seu cumprimento com um bom grau de certeza na história do papado” (Notes on Daniel 7 [Notas sobre Daniel 7]). DAP 116.4
Mede supõe que os três reinos arrancados foram os gregos, os lombardos e os francos; Sir Isaac Newton acredita que foram o Exarcado de Ravena, os lombardos e o Senado e Ducado de Roma. O bispo Newton (Dissertation on the Prophecies [Dissertação sobre as profecias], p. 217-218) apresenta algumas objeções sérias a esses dois esquemas. Os francos não poderiam ser um desses reinos, pois nunca foram arrancados diante do papado. Os lombardos também não, pois nunca se sujeitaram aos papas. Barnes declara: “Certamente não creio que o reino dos lombardos se encontra, conforme comumente se afirma, entre o número de governos temporais que se tornaram sujeitos à autoridade dos papas”. O Senado e o Ducado de Roma também não poderiam ser um deles, pois nunca constituíram um dos dez reinos, dos quais três seriam arrancados pelo chifre pequeno. DAP 116.5
Mas acreditamos que a grande dificuldade na aplicação feita por esses comentaristas proeminentes se encontra no fato de suporem que a profecia acerca da exaltação do papado não havia se cumprido e só aconteceria quando o papa se tornasse um príncipe temporal. Por isso, tentaram encontrar o cumprimento da profecia nos acontecimentos que levaram à soberania temporal do papa, muito embora fique evidente que a profecia dos versículos 24 e 25 não se refere a seu poder civil, mas, sim, a seu poder para dominar a mente e a consciência das pessoas. Tal posição o papa alcançou, conforme veremos posteriormente, em 538 d.C.; logo, a retirada dos três chifres ocorreu antes disso, a fim de abrir caminho para sua exaltação ao domínio espiritual. A dificuldade insuperável em todas as tentativas de aplicar a profecia aos lombardos e aos outros poderes supramencionados é que eles ocorreram tarde demais. A profecia, na verdade, trata dos esforços arrogantes do pontífice romano para ganhar poder, não de suas iniciativas para oprimir e humilhar as nações depois de haver assegurado a supremacia. DAP 117.1
A posição que assumimos com confiança é a de que os três poderes, ou chifres, arrancados pelo papado foram os hérulos, os vândalos e os ostrogodos. Tal opinião se baseia nas declarações de historiadores que passamos agora a citar. DAP 117.2
Odoacro, o líder dos hérulos, foi o primeiro bárbaro a reinar sobre os romanos. Ele assumiu o trono da Itália, de acordo com Gibbon (Decline and Fall of the Roman Empire [Declínio e Queda do Império Romano], vol. 3, p. 510, 515), em 476 d.C. Acerca de sua crença religiosa, o autor (p. 516) afirma: “Assim como o restante dos bárbaros, ele fora instruído na heresia do arianismo; mas reverenciava as figuras monásticas e episcopais. O silêncio dos católicos revela a tolerância que desfrutavam”. DAP 117.3
Mais uma vez, ele diz (p. 547): DAP 117.4
“Os ostrogodos, os burgúndios, os suevos e os vândalos, que já haviam ouvido à eloquência do clero latino, preferiam as lições mais inteligíveis dos professores de sua região; e o arianismo foi adotado como a fé nacional dos conversos guerreiros que se estabeleceram nas ruínas do império ocidental. Essa diferença religiosa irreconciliável se transformou em uma fonte perpétua de suspeita e ódio; e o estigma de serem chamados de bárbaros se tornou ainda mais amargo pelo acréscimo do epíteto herege. Os heróis do norte, que haviam admitido, com certa relutância, a crença de que todos os seus antepassados estavam no inferno, ficaram atônitos e exasperados ao descobrirem que eles próprios haviam apenas mudado o modo de sua condenação eterna”. DAP 117.5
Pede-se ao leitor que analise com cuidado mais algumas declarações históricas que lançam luz sobre a situação da época. Stanley (History of the Eastern Church, p. 151) diz: DAP 117.6
“Toda a vasta população gótica que desceu ao império romano, se é que pode ser considerada cristã, aderiu à fé do herege alexandrino. Nossa primeira versão teutônica das Escrituras foi feita por um missionário ariano, Ulfilas. O primeiro conquistador de Roma, Alarico, e o primeiro conquistador da África, Genserico, eram arianos. Teodorico, o grande rei da Itália, e herói de Nibelungen Lied [Canção dos nibelungos], era ariano. O lugar vazio em sua imensa sepultura em Ravena testemunha da vingança dos ortodoxos a sua memória, quando, em triunfo, eles quebraram o vaso de pórfiro no qual seus súditos arianos guardavam com reverência suas cinzas.” DAP 117.7
Ranke, em History of the Popes [História dos papas] (Londres, edição de 1871), vol. 1, p. 9, afirma: DAP 118.1
“Mas ela [a igreja] caiu, como era inevitável, em muitas situações embaraçosas, encontrando-se em uma condição totalmente alterada. Um povo pagão tomou posse da Bretanha; reis arianos se apropriaram da maior parte do restante do oeste, ao passo que os lombardos, antigos adeptos do arianismo e vizinhos extremamente poderosos e hostis, estabeleceram uma sólida soberania bem diante dos portões de Roma. Enquanto isso, os bispos romanos, cercados por todos os lados, se portaram com toda a prudência e pertinácia que continuam a caracterizá-los de modo peculiar, a fim de recuperar o domínio, pelo menos de sua diocese patriarcal.” DAP 118.2
Maquiavel, em History of Florence [História de Florença], p. 14, conta: DAP 118.3
“É importante destacar que quase todas as guerras que os bárbaros do norte realizaram na Itália foram causadas pelos pontífices. Os vastos exércitos que inundavam o país foram trazidos, de modo geral, por provocação deles”. DAP 118.4
Tais citações nos dão uma visão geral das circunstâncias da época e mostram que, embora as mãos dos pontífices romanos não estivessem visivelmente manifestas nas movimentações do cenário político, elas constituíam o poder em operação assídua nos bastidores a fim de garantir a realização de seus propósitos. A relação entre esses reis arianos e o papa, que nos deixa clara a razão por que era necessário que fossem depostos, a fim de abrir caminho para a supremacia papal, é discutida no testemunho de Mosheim a seguir, relatado em History of the Church, séc. 6, parte 2, cap. 2, seção 2: DAP 118.5
“Em contrapartida, é certo, com base em diversos relatos da mais elevada autenticidade, que tanto imperadores quanto as nações em geral estavam longe de se mostrar dispostas a suportar com paciência o jugo de servidão que os papas estavam impondo à igreja cristã. Os príncipes góticos colocaram limites ao poder desses arrogantes prelados da Itália, não permitindo que nenhum subisse ao pontificado sem sua aprovação e reservando a si o direito de decidir a legalidade de cada nova eleição.” DAP 118.6
Um exemplo que prova essa declaração vem da história de Odoacro, o primeiro rei ariano supramencionado, conforme relatado por Bower em History of the Popes [História dos Papas], vol. 1, p. 271. Por ocasião da morte do papa Simplício, em 483 d.C., o clero e o povo se reuniram para a eleição de um novo papa. De repente, Basílio, prefeito pretório, e tenente do rei Odoacro, apareceu na assembleia e expressou sua surpresa ao ver que uma obra como a de escolher o sucessor do papa falecido estivesse acontecendo sem sua presença. Em nome do rei, declarou nulo e inválido tudo que fora feito até então e ordenou que a eleição começasse novamente. Sem dúvida, um chifre que exercia tamanho poder sobre o pontífice papal deveria ser eliminado para que o papa pudesse alcançar a supremacia predita. DAP 118.7
Enquanto isso, Zenão, imperador do oriente e amigo do papa, estava ansioso para expulsar Odoacro da Itália (Maquiavel, p. 6), ato que logo teria a satisfação de ver realizado sem passar pelo trabalho de se intrometer na questão. Aconteceu o seguinte: Teodorico subira ao trono do reino ostrogodo na Mésia e Panônia. Tendo uma relação amistosa com Zenão, escreveu-lhe dizendo que era impossível confinar os góticos à pobre província de Panônia. Então lhe pediu permissão para conduzi-los a uma região mais favorável, a qual pudessem conquistar e possuir. Zenão lhe deu o aval para marchar contra Odoacro e tomar posse da Itália. Em consequência, após três anos de guerra, o reino dos hérulos na Itália foi dominado, Odoacro foi traiçoeiramente assassinado e Teodorico estabeleceu os ostrogodos na península italiana. Conforme já mencionado, ele era ariano, e a lei de Odoacro acerca da sujeição da eleição do papa ao rei manteve-se em vigor. DAP 119.1
O episódio a seguir demonstra como o papado se encontrava em completa sujeição a seu poder. Os católicos do oriente haviam iniciado uma perseguição contra os arianos em 523. Teodorico então convocou o papa João a sua presença e lhe disse: DAP 119.2
“Se o imperador [Justino, o antecessor de Justiniano] não achar por bem revogar o edito que promulgou nos últimos tempos contra aqueles de minha crença [isto é, os arianos], é minha firme resolução emitir uma lei semelhante contra os da mesma fé que ele [ou seja, os católicos]; e garantir que seja cumprida em toda parte com o mesmo rigor. Aqueles que não professam a fé de Niceia são hereges para ele, e quem o faz é herege para mim. Tudo que pode ser usado para desculpar ou justificar sua severidade em relação ao primeiro grupo desculpa e justifica a minha em relação ao segundo. Mas o imperador não conta com ninguém a seu redor que ouse falar com liberdade e abertura aquilo que pensa ou a quem ele ouviria caso alguém fizesse isso. Mas a grande veneração que ele professa pela sua sé não deixa dúvidas de que ele o ouviria. Por isso, peço que se dirija a Constantinopla e ali reprove, tanto em meu nome quanto no seu, as medidas violentas que aquela corte tão apressadamente defendeu. Seu é o poder de dissuadir o imperador; e até que você, ou melhor, até que os católicos [nome que Teodorico aplicava aos arianos] voltem a desfrutar o livre exercício de sua religião e retornem a todas as igrejas das quais foram expulsos, o senhor não deve nem pensar em voltar para a Itália (Bower, History of the Popes, vol. 1, p. 325). DAP 119.3
O papa que recebeu uma ordem tão sumária de não voltar a pôr os pés em solo italiano até cumprir a vontade do rei sem dúvida não poderia ter esperanças de avançar para qualquer tipo de supremacia até que tal poder fosse tirado do caminho. Barônio, segundo Bower, afirma que o papa se sacrificou nessa ocasião e aconselhou o imperador a não cumprir, de maneira nenhuma, a exigência que o rei havia feito. Mas Bower acha que isso é inconsistente, já que ele não poderia “se sacrificar sem, ao mesmo tempo, sacrificar católicos inocentes no ocidente, em número muito maior, os quais eram súditos do rei Teodorico ou de príncipes arianos que tinham aliança com ele”. É certo que o papa e outros embaixadores foram tratados com severidade ao retornarem, o que Bower explica da seguinte forma: DAP 119.4
“Outros os acusaram de grande traição. E os homens proeminentes de Roma se tornaram suspeitos, nessa época, de ser portadores de uma correspondência de traição com a corte de Constantinopla, maquinando a ruína do império gótico na Itália” (idem, p. 326). DAP 120.1
Os sentimentos dos defensores do papa em relação a Teodorico podem ser avaliados com precisão por meio da citação já feita acerca da vingança que fizeram à sua memória, quando arrancaram de seu imenso túmulo em Ravena o vaso de pórfiro onde seus súditos arianos haviam colocado suas cinzas com toda reverência. Mas tais sentimentos são expressos por Barônio, que censura “Teodorico, chamando-o de bárbaro cruel, tirano selvagem e ímpio ariano”. Contudo, “após ter exagerado com toda sua eloquência e lamentado a condição deplorável de escravidão à qual a igreja de Roma fora reduzida por aquele herege, Barônio, no fim, se consola e seca as próprias lágrimas com o piedoso pensamento de que o autor de tal calamidade morreu logo em seguida e foi condenado à danação eterna!” (Baronius’s Annals [Anais de Barônio], 526 d.C., p. 116; Bower, vol. 3, p. 328). DAP 120.2
Enquanto os católicos sentiam a pressão refreadora de um rei ariano na Itália, sofriam uma perseguição violenta dos vândalos arianos na África (Gibbon, cap. 37, seção 2.) Elliott, em Horae Apocalypticae, vol. 3, p. 152, nota 3, afirma: “Os reis vândalos não só eram arianos, como também perseguidores dos católicos; em Sardenha e na Córsega, sob o episcopado romano, podemos presumir, bem como na África”. DAP 120.3
Essas eram as circunstâncias quando, em 533 d.C., Justiniano deu início às guerras vândalas e góticas. Desejando assegurar a influência do papa e dos católicos, promulgou o memorável decreto de transformar o papa no cabeça de todas as igrejas. A partir do início de execução dessa lei, em 538 d.C., começa o período da supremacia papal. Quem ler a história da campanha africana, 533-534 d.C., e da campanha italiana, 534-538 d.C., notará que os católicos de todos os lugares saudavam como libertadores o exército de Belisário, o general de Justiniano. DAP 120.4
O testemunho de D’Aubigné (Reformation [Reforma], livro 1, cap. 1), também lança luz sobre as tendências ocultas que deram forma aos movimentos externos desse período tão agitado. Ele diz: DAP 120.5
“Os príncipes que, durante essa época tempestuosa, sofriam abalos no trono, ofereciam sua proteção caso Roma os apoiasse em troca. Eles lhe concediam autoridade espiritual, contanto que desse o mesmo retorno em poder secular. Entregavam prodigamente a alma das pessoas na esperança de que a igreja os ajudasse contra seus inimigos. O poder da hierarquia, em ascendência, e o poder imperial, em decadência, apoiavam-se, assim, um sobre o outro, e essa aliança acelerou o destino duplo de cada um. Roma não poderia sair perdendo. Um edito de Teodósio II e outro de Valentiniano III proclamaram o bispo romano “dirigente de toda a igreja”. Justiniano publicou um decreto semelhante. DAP 120.6
Mas nenhum decreto dessa natureza poderia ser colocado em vigor enquanto os chifres arianos continuassem no caminho. Eles deveriam ser arrancados. Os vândalos caíram perante o braço vitorioso de Belisário em 534 d.C.; e os góticos se retiraram, permitindo, assim, que ele tivesse a posse indisputada de Roma em 538 d.C. (Gibbon, Rome [Roma], cap. 41). DAP 121.1
Procópio relata que a guerra africana foi assumida por Justiniano para alívio dos cristãos (católicos) naquela região; e quando ele expressou sua intenção a esse respeito, o administrador do palácio quase o dissuadiu desse propósito; mas ele teve um sonho no qual foi instruído “a não se intimidar de executar seu desígnio, pois, ao ajudar os cristãos, subjugaria o poder dos vândalos” (Evagrius, Ecclesiastical History [História eclesiástica], livro 4, cap. 16). DAP 121.2
Veja mais uma vez o que Mosheim diz: DAP 121.3
“É verdade que os gregos que haviam aceitado os decretos do Concílio de Niceia [isto é, os católicos], perseguiram e oprimiram os arianos onde quer que sua influência e autoridade conseguissem chegar. Em contrapartida, os niceanos não foram tratados com menos rigor por seus adversários [os arianos], sobretudo na África e na Itália, onde sentiram, com forte gravidade, o peso do poder ariano e a amargura do ressentimento hostil. Todavia, os triunfos do arianismo foram passageiros e seus dias de prosperidade foram completamente obscurecidos quando o braço de Justiniano expulsou os vândalos da África e os góticos da Itália (Mosheim, Church History [História da Igreja], séc. 6, parte 2, cap. 5, seção 3). DAP 121.4
Elliott, em Horae Apocalypticae, faz duas listas dos dez reinos que surgiram do império romano, variando a segunda enumeração de acordo com as mudanças que ocorreram no período posterior ao qual ela se aplica. A primeira lista do autor difere da mencionada nos comentários sobre Daniel 2:42 somente por colocar os alamanos no lugar dos hunos e os bávaros no lugar dos lombardos, variação que pode ser facilmente explicada. Mas dessa lista, ele cita os três que foram arrancados pelo papado nas seguintes palavras: “Posso mencionar três que foram erradicados de diante do papa da primeira lista apresentada, a saber, os hérulos na época de Odoacro, os vândalos e os ostrogodos” (vol. 3, p. 152, nota 1). DAP 121.5
Embora ele prefira a segunda lista, na qual coloca os lombardos no lugar dos hérulos, a primeira é um bom testemunho de que, se fizermos uma lista dos dez reinos enquanto os hérulos ainda estavam no poder, eles constituem um dos chifres que foram arrancados. DAP 121.6
Com base no testemunho histórico supracitado, cremos ter deixado bem claro que os três chifres arrancados foram os poderes que acabamos de nomear, a saber, os hérulos em 493 d.C., os vândalos em 534 d.C. e os ostrogodos em 538 d.C. DAP 121.7
1. “Proferirá palavras contra o Altíssimo”. O papado fez isso? Veja alguns dos títulos que o papa aceitou: “Vice-gerente do Filho de Deus”, “Nosso Senhor Deus, o Papa”, “Outro Deus na Terra”, “Rei do mundo”, “Rei dos reis e Senhor dos senhores”. O papa Nicolau disse ao imperador Miguel: “O papa, chamado por Constantino de Deus, nunca pode ser preso ou liberto por seres humanos; pois Deus não pode ser julgado pelos homens”. Seria necessária uma blasfêmia mais ousada do que essa? Leia também sobre a adulação que os papas receberam de seus seguidores sem os repreender em nada. Um prelado de Veneza, na quarta sessão de Latrão, se dirigiu ao papa da seguinte maneira: “Tu és nosso Pastor e Médico, em suma, um segundo Deus na Terra”. Outro bispo o chamou de “leão da tribo de Judá, o Salvador prometido”. O lord Anthony Pucci, no quinto concílio de Latrão, disse ao papa: DAP 121.8
“A visão de tua divina majestade não me assombra nem um pouco; pois não sou ignorante do fato de que todo poder tanto no Céu quanto na Terra te foi dado e que a palavra profética se cumpre em ti: ‘Todos os reis se prostrem perante ele; todas as nações o sirvam’” (ver Oswald, Kingdom Which Shall Not be Destroyed [O Reino que Não Será Destruído], p. 97-99). DAP 122.1
Sobre o versículo 25, o Dr. Clarke diz: DAP 122.2
“‘Ele falará como se fosse Deus’. Assim São Jerônimo cita de Símaco. A ninguém isso se aplica tão bem ou de forma tão completa quanto aos papas de Roma. Eles presumem ter infalibilidade, a qual só pertence a Deus. Professam perdoar pecados, prerrogativa unicamente divina. Alegam abrir e fechar o Céu, algo que só Deus pode fazer. Dizem estar acima de todos os reis da Terra, posição que apenas o Senhor ocupa. E vão além de Deus ao presumirem isentar nações inteiras de seu juramento de lealdade ao rei, quando os soberanos não lhes agradam. E vão contra Deus quando dão indulgências pelo pecado. Esta é a pior de todas as blasfêmias”. DAP 122.3
2. “Oprimirá os Seus santos” (NVI). O papado fez isso? Para o estudioso da história da igreja, nenhuma informação precisa ser dada como resposta. Todos sabem que, por muitos anos, a igreja papal tem realizado uma obra incansável contra os verdadeiros seguidores de Deus. Capítulo após capítulo poderia ser citado, caso nosso espaço permitisse. Guerras, cruzadas, massacres, inquisições e perseguições de todos os tipos — essas foram suas armas de extinção. DAP 122.4
Scott, em sua obra Church History [História da Igreja] diz: DAP 122.5
“Nenhum cálculo conseguiria alcançar o número dos que foram condenados à morte, de diferentes maneiras, por persistirem na profissão do evangelho e se oporem às corrupções da igreja de Roma. Um milhão de pobres valdenses pereceu na França; novecentos mil cristãos ortodoxos foram executados em menos de trinta anos após a instituição da ordem dos jesuítas. O Duque de Alba se gabava por ter levado à morte trinta e seis mil na Holanda pelas mãos de algozes no intervalo de alguns anos. A inquisição destruiu, por intermédio de várias torturas, cento e cinquenta mil em trinta anos. Esses são apenas alguns exemplos, e muito poucos, de todos os que a história registrou. Mas o total só será descoberto quando a Terra revelar o sangue de cada um e não mais cobrir seus mortos.” DAP 122.6
Ao comentar sobre a profecia de que o chifre pequeno “destruir[ia] os santos do Altíssimo” (ARC), Barnes, em suas notas sobre Daniel 7:25, afirma: DAP 124.1
“Haveria alguma dúvida de que isso se aplica ao papado? A inquisição, as perseguições dos valdenses, as matanças do Duque de Alba, as fogueiras de Smithfield, as torturas em Goa — de fato, toda a história do papado pode ser usada como prova de que ela se aplica a esse poder. Se há algo que poderia ter destruído os santos do Altíssimo, que poderia tê-los eliminado da Terra a ponto de extinguir a religião evangélica, seria, sem dúvida, a perseguição do poder papal. No ano de 1208, o papa Inocêncio III proclamou uma cruzada contra os valdenses e albigenses, na qual um milhão pereceram. Desde o início da ordem dos jesuítas em 1540 até 1580, novecentos mil foram destruídos. Cento e cinquenta mil pereceram pela inquisição em trinta anos. Nos países baixos, cinquenta mil pessoas foram enforcadas, decapitadas, queimadas e enterradas vivas, pelo crime de heresia, dentro do intervalo de 38 anos, do edito de Carlos V contra os protestantes até a paz de Cateau-Cambrésis em 1559. Dezoito mil sofreram nas mãos do algoz dentro de cinco anos e meio, durante a administração do Duque de Alba. Aliás, o menor conhecimento sobre a história do papado convence qualquer um de que a guerra contra os santos (v. 21) e a destruição aos santos (v. 25) se aplica estritamente a esse poder e caracteriza com precisão sua história” (ver Buck, Theological Dictionary [Dicionário Teológico], verbete Persecutions; Oswald, Kingdom, etc., p. 107-133; Dowling, History of Romanism [História do Romanismo]; Fox, Book of Martyrs [O Livro dos Mártires]; Charlotte Elizabeth, Martyrology [Martirológio]; The Wars of the Huguenots [As Guerras dos Huguenotes]; The Great Red Dragon [O Grande Dragão Vermelho], de Anthony Gavin, ex-sacerdote católico romano de Saragossa, Espanha; Histories of the Reformation [Histórias da Reforma], etc.). DAP 124.2
A fim de conter a força desse testemunho prejudicial da história inteira, os papistas negam que a igreja tenha perseguido as pessoas. Foi o poder secular. A igreja só se posicionou quanto à questão de heresia, então entregou os transgressores ao poder civil, a fim de serem tratados conforme o bel-prazer da corte secular. A hipocrisia perversa dessa afirmação é clara o bastante para transformá-la em um insulto total ao senso comum. Naqueles tempos de perseguição, o que era o poder secular? Um mero instrumento nas mãos da igreja, por ela controlado, para cumprir sua vontade sangrenta. E quando a igreja entregava os prisioneiros para os algozes, a fim de serem destruídos, com zombaria maligna fazia uso da seguinte fórmula: “E te entregamos ao braço secular e ao poder da corte civil; ao mesmo tempo, avidamente suplicamos à corte que modere sua sentença para que teu sangue não seja tocado, nem tua vida corra qualquer perigo”. Depois disso, conforme já se intencionava, as infelizes vítimas do ódio papal eram imediatamente executadas (Geddes, Tracts on Popery [Tratados sobre o Papado]; View of the Court of Inquisition in Portugal [Visão sobre o Tribunal da Inquisição em Portugual], p. 446; Limborch, vol. 2, p. 289.) DAP 124.3
Mas as falsas afirmações dos papistas a esse respeito foram absolutamente negadas e contestadas por um de seus próprios escritores, o cardeal Belarmino, que nasceu na Toscana em 1542 e, após sua morte, em 1621, quase foi colocado no rol dos santos por causa de seus grandes serviços em favor do papado. Esse homem, em certa ocasião, durante o calor de uma controvérsia, acabou admitindo os fatos reais da situação. Após Lutero ter afirmado que a igreja (em referência à igreja verdadeira) nunca queimou hereges, Belarmino, entendendo que o reformador se referia à igreja de Roma, respondeu: DAP 124.4
“Esse argumento prova não o ponto de vista de Lutero, mas sua ignorância ou descaramento. Visto que um número quase infinito foi queimado ou condenado à morte de outras maneiras, ou Lutero desconhecia o fato, sendo, portanto, ignorante, ou, se sabia, tornou-se culpado de falsidade e descaramento. O fato de que hereges foram queimados com frequência pela igreja pode ser provado por meio de alguns dentre muitos exemplos.” DAP 125.1
A fim de mostrar a relação entre o poder secular e a igreja, conforme defendida pelos católicos romanos, citamos a resposta do mesmo autor ao argumento de que a única arma confiada à igreja é “a espada do Espírito, que é a palavra de Deus”. A isso, ele respondeu: DAP 125.2
“Assim como a igreja tem príncipes eclesiásticos e seculares, que são seus dois braços, conta também com duas espadas, a espiritual e a material. Portanto, quando sua mão direita é incapaz de converter um herege usando a espada do Espírito, ela invoca o auxílio da mão esquerda e coage os hereges com a espada material”. DAP 125.3
Em resposta ao argumento de que os apóstolos nunca invocaram o braço secular contra os hereges, afirmou: DAP 125.4
“Os apóstolos não o fizeram porque não havia governante cristão a quem pudessem recorrer para ajudá-los. Mas posteriormente, nos tempos de Constantino, […] a igreja convocou o auxílio do braço secular” (Dowling, History of Romanism [História do Catolicismo Romano], p. 547-548). DAP 125.5
Para corroborar com esses fatos, 50 milhões de mártires — esse é o menor cálculo citado pelos historiadores — se levantarão no juízo como testemunhas de sua obra sangrenta. DAP 125.6
Roma pagã perseguiu a igreja cristã de maneira implacável, e se estima que 3 milhões de cristãos tenham perecido ao longo dos três primeiros séculos. No entanto, conta-se que os cristãos primitivos oravam pela continuidade de Roma imperial, pois sabiam que, quando essa forma de governo terminasse, outro poder perseguidor muito pior se levantaria, o qual, literalmente, conforme a profecia declara, “destruir[ia] os santos do Altíssimo” (Daniel 7:25, ARC). Roma pagã podia até matar bebês, mas poupava as mães; Roma papal, por sua vez, matava mães e bebês ao mesmo tempo. Nenhuma idade, nenhum gênero, nenhuma condição de vida eram isentos de sua ira incessante. Certo escritor enérgico afirmou: “Quando Herodes morreu, desceu ao túmulo em infâmia. A Terra passou a contar com um assassino e perseguidor a menos; já o inferno recebeu mais uma de suas vítimas. Oh, Roma! Qual não será teu inferno e o de teus defensores quando teu juízo chegar!” DAP 125.7
3. “Cuidará em mudar os tempos e a lei”. Qual lei? E de quem? Não as leis de mais um governo terreno, pois não era nada extraordinário ou estranho um poder mudar as leis de outro, quando conseguia subjugá-lo sob seu domínio. Não se trata de leis humanas de nenhuma espécie, pois o chifre pequeno tinha poder para alterá-las até onde sua jurisdição se estendia. Mas os tempos e a lei em questão seriam os que esse poder somente pensaria em mudar, não sendo capaz de fazê-lo. São as leis do mesmo Ser a quem pertencem os santos que são opressos por esse poder, a saber, as leis do Altíssimo. E o papado tentou fazê-lo? Sim, até isso! Em seus catecismos, omite o segundo mandamento do decálogo a fim de abrir caminho para a adoração de imagens. E dividiu o décimo mandamento em dois para manter o total de dez. Ah, e algo mais audacioso do que isso: tomou o quarto mandamento, dele riscou o sábado de Jeová, o único memorial que o grande Deus já deu ao ser humano e erigiu em seu lugar uma instituição rival que serve a outro propósito.6 DAP 126.1
4. “E eles serão entregues nas suas mãos por um tempo, e tempos, e metade de um tempo” (ARC). O pronome eles abrange os santos, os tempos e as leis que acabaram de ser mencionados. Por quanto tempo eles seriam entregues nas mãos desse poder? Um tempo, conforme vimos em Daniel 4:23, corresponde a um ano; dois tempos, o mínimo que o plural pode denotar, são dois anos, e metade de um tempo (Sept. ῆμισυ), meio ano. Gesenius também traz “פָּלַג, aram., metade (Daniel 7:25)”. Logo, temos três anos e meio de continuação desse poder. A palavra hebraica, ou melhor, aramaica para o texto que temos diante de nós é עִדָּן iddân, definida por Gesenius da seguinte forma: “Tempo. Especificação, em linguagem profética, para um ano. Daniel 7:25, עַד־עִדָּן וְעִדָּנִין וּפְלַג עִדָּֽן por um ano, também dois anos, e metade de um ano, ou seja, para três anos e meio; comp. Jos. B. J. 1. 1. 1”. Devemos agora considerar que estamos no meio de uma profecia simbólica; logo, esta medida de tempo não é literal, mas simbólica também. Surge então a pergunta: qual é o período denotado por três anos e meio de tempo profético? A regra que a Bíblia nos dá é que, em símbolo, um dia representa um ano (Ezequiel 4:6; Números 14:34). Ao discorrer sobre a palavra hebraica para dia, יוֹם (yom), Gesenius faz o seguinte comentário: “3. Às vezes, יָמִים [yamim] marca um espaço definido de tempo, a saber, um ano, como também em siríaco e aramaico עִדָּן [iddân] significa tanto tempo quanto ano; de igual modo, em inglês, diversas palavras que representam tempo, peso e medida também são usadas para denotar alguns tempos, pesos e medidas específicos”. O ano judaico comum, que deve ser usado como base para cálculo, continha trezentos e sessenta dias. Três anos e meio contêm 1.260 dias. Uma vez que cada dia representa um ano, temos então 1.260 anos de continuidade da supremacia desse chifre. O papado possuiu domínio ao longo de todo esse tempo? Mais uma vez, a resposta é sim. O edito do imperador Justiniano, datado de 533 d.C., transformou o bispo de Roma no cabeça de todas as igrejas. Mas esse edito só poderia ser colocado em prática quando os ostrogodos arianos, o último dos três chifres que foram arrancados a fim de abrir caminho para o papado, fossem expulsos de Roma. Tal feito só foi realizado em 538 d.C. A lei não teria nenhum efeito caso tal processo de domínio não houvesse ocorrido. Por isso, passamos a contar de 538 em diante o período em que os santos estiveram de fato nas mãos desse poder. A partir desse momento, o papado ocupou a supremacia por 1.260 anos? Com toda precisão. Pois 538 + 1.260 = 1.798; e, no ano 1798, Berthier, com o exército francês, invadiu Roma, proclamou uma república, prendeu o papa e, por um tempo, aboliu o papado. Desde então, este nunca mais desfrutou os privilégios e a imunidade que possuía antes. Assim, mais uma vez este poder cumpre ao pé da letra as especificações da profecia, provando, sem sombra de dúvida, que a aplicação é correta. DAP 126.2
Após descrever o caráter terrível do chifre pequeno e de afirmar que os santos seriam entregues em suas mãos por 1.260 anos, trazendo-nos até 1798, o versículo 26 declara: “Mas, depois, se assentará o tribunal para lhe tirar o domínio, para o destruir e o consumir até ao fim”. No versículo 10 do mesmo capítulo, encontramos basicamente a mesma expressão a respeito do juízo: “assentou-se o tribunal”. É consistente supor que os dois casos fazem referência ao mesmo julgamento. Mas a cena sublime narrada no versículo 10 é o início do juízo investigativo no santuário celestial, conforme aparecerá nos comentários sobre Daniel 8:14 e 9:25-27. O início dessa cena de juízo é posicionado, pela profecia, no fim do grande período profético dos 2.300 anos, que terminaram em 1844 (leia nota sobre Daniel 9:25-27). Quatro anos depois disso, em 1848, a grande revolução que abalou tantos tronos na Europa também tirou o papa de seus domínios. Sua restauração pouco depois ocorreu pela força de armas estrangeiras. Foi somente por esse intermédio que se manteve até a perda definitiva de seu poder temporal em 1870. A subversão do papado em 1798 marcou a conclusão do período profético de 1.260 anos e constituiu a ferida mortal que sobreviria a esse poder, profetizada em Apocalipse 13:3. Essa ferida mortal, porém, seria curada. Em 1800, outro papa foi escolhido; seu palácio e domínio temporal foram restaurados. Segundo afirma Croly, todas as suas prerrogativas, exceto o papel de perseguidor sistemático, voltaram para seu controle. Dessa maneira, a ferida foi sarada. Contudo, desde 1870, ele não desfruta o prestígio de governante temporal entre as nações da Terra. DAP 127.1
VERSÍCULO 27. O reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão. 28. Aqui, terminou o assunto. Quanto a mim, Daniel, os meus pensamentos muito me perturbaram, e o meu rosto se empalideceu; mas guardei estas coisas no coração. DAP 127.2
Depois de contemplar a cena sombria e devastadora da opressão papal sobre a igreja, o profeta volve os olhos mais uma vez para o momento glorioso do descanso dos santos, quando herdarão o reino e ficarão livres de todos os poderes opressores, na posse eterna. Como os filhos de Deus podem manter o ânimo neste mundo mau, em meio ao desgoverno e a opressão dos poderes deste planeta, tendo que presenciar as abominações praticadas na Terra, se não olharem adiante para o reino de Deus e o retorno do Senhor com a plena certeza de que as promessas a esse respeito sem dúvida serão cumpridas e com toda rapidez? DAP 127.3
NOTA: Alguns eventos alarmantes a respeito do papado, cumprindo as profecias expressas neste capítulo sobre esse poder, ocorreram nos últimos anos. A partir de 1798, quando foi desferido o primeiro grande golpe sobre o papado, quais têm sido as principais características de sua história? Resposta: a rápida evasão de seus apoiadores naturais e sua pretensão de poder fazer declarações ainda mais ousadas. Em 1844, o tribunal do versículo 10 se assentou, ou seja, iniciou-se o juízo investigativo no santuário celestial, que antecede a volta de Cristo. Em 8 de dezembro de 1854, o dogma da Imaculada Conceição foi decretado pelo papa. Em 21 de julho de 1870, o grande concílio ecumênico reunido em Roma decretou deliberadamente, em votação de 538 contra 2, que o papa é infalível. No mesmo ano, a França, cujas armas mantiveram o papa em seu trono, foi esmagada pela Prússia, e assim o último esteio foi retirado do papado. Então Vítor Emanuel aproveitou a oportunidade para executar seu tão antigo sonho de unir a Itália. Tomou Roma e a transformou na capital de seu reino. A essas tropas, lideradas pelo general Cadorna, Roma se rendeu no dia 20 de setembro de 1870. O poder temporal do papa foi totalmente retirado, para, segundo Vítor Emanuel, nunca mais ser restaurado. Desde essa ocasião, os papas se fecharam no Vaticano e se intitulam “prisioneiros”. Por causa das palavras insolentes que o chifre proferiu, Daniel viu a besta ser destruída e entregue ao fogo. Tal destruição ocorrerá na segunda vinda de Cristo e por meio desse evento; pois o homem da iniquidade será consumido pelo espírito da boca de Cristo e destruído pelo brilho de Sua vinda (2 Tessalonicenses 2:8). Que palavras poderiam ser mais arrogantes, presunçosas, blasfemas ou insultantes ao mais alto Céu do que a adoção deliberada do dogma de infalibilidade, revestindo assim um homem mortal de uma prerrogativa da divindade? E isso aconteceu, por meio de manobras e influência papais, em 21 de julho de 1870. Logo em seguida, o último vestígio de poder temporal foi arrancado de suas mãos. Foi por causa dessas palavras, como que em conexão quase imediata com elas, que o profeta viu esse poder ser entregue ao fogo. Seu domínio deveria ser consumido até o fim, subentendendo que, quando seu poder como governante civil fosse completamente destruído, o fim não estaria distante. E o profeta acrescenta de imediato: “O reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo”. Tudo na linha do tempo desta profecia se cumpriu plenamente, com exceção da cena final. A seguir, virá o último ato do drama, e também o principal, quando a besta será entregue ao fogo e os santos do Altíssimo tomarão posse do reino. Estamos agora às portas desse evento glorioso. DAP 128.1