Daniel e Apocalipse
Daniel 1 — Daniel no Cativeiro
VERSÍCULO 1. No ano terceiro do reinado de Jeoaquim, rei de Judá, veio Nabucodonosor, rei da Babilônia, a Jerusalém e a sitiou. 2. O Senhor lhe entregou nas mãos a Jeoaquim, rei de Judá, e alguns dos utensílios da Casa de Deus; a estes, levou-os para a terra de Sinar, para a casa do seu deus, e os pôs na casa do tesouro do seu deus. DAP 23.1
Com a característica direta dos escritores bíblicos, Daniel vai direto ao assunto. Ele inicia seu livro em estilo histórico simples. Com exceção de uma parte do capítulo 2, continua em teor histórico até chegarmos ao sétimo capítulo, quando começa a parte profética, em seu sentido mais estrito. Consciente de estar proferindo uma verdade conhecida, ele passa, logo em seguida, a citar uma série de detalhes a fim de confirmar imediatamente sua exatidão. Assim, nos dois versículos citados, ele menciona cinco especificidades que constituem fatos históricos, algo que nenhum autor faria caso estivesse introduzindo uma narrativa fictícia: 1) que Jeoaquim era rei de Judá; 2) que Nabucodonosor era rei de Babilônia; 3) que o último se levantou contra o primeiro; 4) que isso aconteceu no terceiro ano do reinado de Jeoaquim; e 5) que Jeoaquim foi entregue nas mãos de Nabucodonosor, o qual pegou parte dos utensílios sagrados da casa de Deus e os levou para a terra de Sinar, no país de Babilônia (Gênesis 10:10), colocando-os dentro da casa do tesouro de sua divindade pagã. Trechos subsequentes da narrativa trazem numerosos fatos históricos de natureza semelhante. DAP 23.2
Essa queda de Jerusalém foi predita por Jeremias e imediatamente se cumpriu, em 606 a.C. (Jeremias 25:8-11). Jeremias afirma que o cativeiro ocorreu no quarto ano de Jeoaquim, e Daniel, no terceiro. Essa aparente discrepância é explicada pelo fato de Nabucodonosor ter saído em sua expedição perto do final do terceiro ano de Jeoaquim, momento em que começa a contagem de Daniel. Mas ele só conseguiu conquistar Jerusalém em torno do nono mês do ano seguinte, quando Jeremias começa sua contagem (Prideaux, vol. 1, p. 99-100.) Jeoaquim foi preso com o propósito de ser levado para Babilônia, mas se humilhou e recebeu permissão de continuar a governar Jerusalém, como vassalo do rei de Babilônia. DAP 23.3
Essa foi a primeira vez que Jerusalém foi tomada por Nabucodonosor. Duas vezes depois disso, a cidade se revoltou, foi capturada pelo mesmo rei, recebendo um tratamento mais severo a cada ocasião subsequente. Dessas conquistas posteriores, a primeira ocorreu durante o reinado de Joaquim, filho de Jeoaquim, em 599 a.C., quando todos os utensílios sagrados foram transportados ou destruídos; os melhores habitantes, juntamente com o rei, foram levados para o cativeiro. A segunda ocorreu durante o governo de Zedequias. Nela, a cidade suportou o maior cerco que já lhe sobreveio, com exceção do de Tito, em 70 d.C. Ao longo dos dois anos de cerco, os habitantes da cidade sofreram todos os horrores da fome extrema. Por fim, a guarda real e o monarca, na tentativa de fugir da cidade, foram capturados pelos caldeus. Os filhos do rei foram executados na sua frente. Seus olhos foram arrancados e ele foi levado para Babilônia, cumprindo-se assim a predição de Ezequiel, o qual declarou que o soberano seria transportado para Babilônia e morreria ali, mas não veria o lugar (Ezequiel 12:13). Dessa vez, a cidade e o templo foram completamente destruídos e toda a população da cidade e do campo, com exceção de uns poucos agricultores, foi levada cativa para Babilônia em 588 a.C. DAP 23.4
Esse foi o testemunho de Deus contra o pecado. Não que os caldeus fossem os favoritos do Céu, mas o Senhor os usou para castigar as iniquidades de Seu povo. Caso os israelitas houvessem continuado fiéis a Deus e guardado o sábado, Jerusalém teria permanecido para sempre (Jeremias 17:24-27). Mas se afastaram de Deus e Ele os abandonou. Eles primeiramente profanaram os utensílios sagrados pelo pecado, ao introduzir ídolos pagãos em seu meio; depois Ele os profanou por intermédio de juízos, permitindo que fossem levados como troféus para templos pagãos em terras estrangeiras. DAP 24.1
Durante esses dias de tribulação e angústia em Jerusalém, Daniel e seus amigos foram mantidos e instruídos no palácio do rei de Babilônia. Embora fossem cativos em uma terra estrangeira, em alguns aspectos, sem dúvida, encontravam-se em situação mais favorável do que se estivessem em sua terra natal. DAP 24.2
VERSÍCULO 3. Disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, tanto da linhagem real como dos nobres, 4. jovens sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus. 5. Determinou-lhes o rei a ração diária, das finas iguarias da mesa real e do vinho que ele bebia, e que assim fossem mantidos por três anos, ao cabo dos quais assistiriam diante do rei. DAP 24.3
Temos, nesses versículos, o registro do provável cumprimento do anúncio dos juízos vindouros feito pelo profeta Isaías ao rei Ezequias, mais de 100 anos antes. Quando esse rei, em sua vanglória, mostrou aos mensageiros do rei de Babilônia todos os tesouros e objetos sagrados do palácio e do reino, foi advertido de que todos esses bens seriam levados como troféus para a cidade de Babilônia e nada restaria; até mesmo seus filhos, seus descendentes, seriam levados para se tornar eunucos no palácio do rei daquele lugar (2 Reis 20:14-18). É provável que Daniel e seus amigos tenham recebido o tratamento indicado na profecia; pelo menos nada ouvimos acerca de sua posteridade, o que é mais bem explicado por meio dessa hipótese do que de qualquer outra, muito embora alguns argumentem que o termo eunuco passara a significar cargo público, em vez de uma condição. DAP 24.4
O relato nos informa que os jovens escolhidos já eram instruídos em toda sabedoria, doutos em ciência e versados no conhecimento, com capacidade para servir dentro do palácio do rei. Em outras palavras, eles já haviam adquirido um alto grau de educação. Suas faculdades físicas e mentais se encontravam tão bem desenvolvidas que um habilidoso intérprete da natureza humana era capaz de formar uma estimativa bem precisa de suas capacidades. Eles deviam ter entre 18 e 20 anos de idade. DAP 24.5
O tratamento que esses cativos hebreus receberam dá exemplo da política sábia e da liberalidade do rei em ascensão, Nabucodonosor. DAP 25.1
1. Em vez de escolher, assim como muitos reis de eras posteriores, meios para a gratificação de desejos baixos e vis, ele selecionou jovens para serem educados em todas as questões referentes ao reino, a fim de poder contar com auxílio eficiente na administração do império. DAP 25.2
2. Destinou-lhes uma provisão diária proveniente das iguarias da mesa real e do próprio vinho que ele bebia. Em vez da alimentação inferior que alguns poderiam ter considerado boa o bastante para cativos, ofereceu-lhes os finos pratos reais. DAP 25.3
Ao longo de três anos, eles desfrutaram todas as vantagens que o rei proporcionou. Embora cativos, eles eram jovens da realeza e foram tratados como tais pelo benevolente rei dos caldeus. DAP 25.4
É possível se perguntar por que esses indivíduos eram escolhidos, após adequado preparo, para fazer parte do serviço do reino. Não havia babilônios nativos o bastante para preencher essas posições de confiança e honra? Só pode ser porque a juventude caldeia não podia competir com a de Israel em suas qualificações, tanto na esfera mental quanto física, necessárias para ocupar tais funções. DAP 25.5
VERSÍCULO 6. Entre eles, se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias. 7. O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessazar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego. DAP 25.6
Essa mudança de nomes provavelmente foi feita por causa do significado que possuíam. Daniel significava, no hebraico, Deus é meu juiz; Ananias, dom do Senhor; Misael, aquele que é Deus forte; e Azarias, auxílio do Senhor. Cada um desses nomes fazia alguma referência ao Deus verdadeiro e se relacionava com Sua adoração. Por essa razão, foram mudados para nomes cujos significados tivessem relação semelhante com as divindades pagãs e com a adoração dos caldeus. Assim, Beltessazar, o nome dado a Daniel, significava guardador dos tesouros escondidos de Bel; Sadraque, inspiração do sol (que os caldeus adoravam); Mesaque, da deusa Shaca (nome usado para a adoração de Vênus); e Abede-Nego, servo do fogo brilhante (que eles também adoravam). DAP 25.7
VERSÍCULO 8. Resolveu Daniel, firmemente, não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então, pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se. 9. Ora, Deus concedeu a Daniel misericórdia e compreensão da parte do chefe dos eunucos. 10. Disse o chefe dos eunucos a Daniel: Tenho medo do meu senhor, o rei, que determinou a vossa comida e a vossa bebida; por que, pois, veria ele o vosso rosto mais abatido do que o dos outros jovens da vossa idade? Assim, poríeis em perigo a minha cabeça para com o rei. 11. Então, disse Daniel ao cozinheiro-chefe, a quem o chefe dos eunucos havia encarregado de cuidar de Daniel, Hananias, Misael e Azarias: 12. Experimenta, peço-te, os teus servos dez dias; e que se nos deem legumes a comer e água a beber. 13. Então, se veja diante de ti a nossa aparência e a dos jovens que comem das finas iguarias do rei; e, segundo vires, age com os teus servos. 14. Ele atendeu e os experimentou dez dias. 15. No fim dos dez dias, a sua aparência era melhor; estavam eles mais robustos do que todos os jovens que comiam das finas iguarias do rei. 16. Com isto, o cozinheiro-chefe tirou deles as finas iguarias e o vinho que deviam beber e lhes dava legumes. DAP 25.8
Nabucodonosor parece, nesse relato, extraordinariamente livre de fanatismo. Tudo indica que ele não fazia nenhuma força para obrigar seus cativos reais a mudar de religião. Contanto que eles tivessem alguma religião, parecia satisfeito, fosse a mesma que ele professava ou não. E embora seus nomes tenham sido alterados para significar alguma conexão com a adoração pagã, isso pode ter sido feito meramente para evitar o uso de nomes judaicos pelos caldeus do que para indicar qualquer mudança de sentimento ou prática da parte daqueles a quem os nomes foram dados. DAP 26.1
Daniel resolveu não se contaminar com as iguarias e o vinho do rei. O jovem hebreu tinha outros motivos para essa conduta além das consequências de tal alimentação sobre o sistema físico, embora fosse extrair grande vantagem nesse aspecto pelo curso de ação que se propôs a adotar. Entretanto, com frequência, a carne consumida por reis e príncipes das nações pagãs, que costumavam ser os sumos sacerdotes da religião, era primeiro oferecida em sacrifício a ídolos, e o vinho que bebiam era derramado como libação perante os deuses. Além disso, parte da carne que comiam era considerada impura pela lei judaica. Por essas duas razões, Daniel não poderia se alimentar desses itens, se quisesse ser coerente com sua religião. Por isso, solicitou, não com uma disposição mal-humorada, nem irritadiça, mas por escrúpulos de sua consciência, que não fosse obrigado a se contaminar. E respeitosamente comunicou esse pedido ao oficial responsável. O chefe dos eunucos temeu atender o pedido de Daniel, uma vez que o próprio rei havia escolhido a alimentação que os jovens cativos comeriam. Isso revela o grande interesse pessoal do rei nesses indivíduos. Ele não os confiou às mãos de seus servos, instruindo-os a cuidar deles da melhor maneira, sem se envolver com os detalhes, mas ele próprio designou a dieta e o vinho que consumiriam. E eram de um tipo que ele honestamente supunha ser o melhor, uma vez que o príncipe dos eunucos achava que o afastamento da alimentação proposta os tornaria mais fraco e com o rosto mais abatido do que os outros que seguissem a dieta oferecida. Então cairia sobre ele a responsabilidade pela negligência ou tratamento inadequado daqueles jovens e o oficial poderia perder a cabeça. Mas também entendia muito bem que, se eles se mantivessem em boas condições físicas, o rei não se oporia aos meios utilizados, mesmo que fossem contrários a suas ordens expressas. Parece que o objetivo sincero do soberano era lhes assegurar, por qualquer metodologia que fosse utilizada, que tivessem o melhor desenvolvimento mental e físico que pudesse ser alcançado. Quanta diferença da intolerância e da tirania que, em geral, exercem controle supremo sobre o coração daqueles que se encontram revestidos de poder absoluto. No caráter de Nabucodonosor, encontramos muitas coisas dignas de nossa mais elevada admiração. DAP 26.2
Daniel solicitou legumes e água para ele e os três amigos. A palavra legumes se refere a alimentos como ervilha e feijões, etc. Bagster comenta o seguinte acerca do termo original usado para legumes: “Zeroim denota todas as plantas leguminosas, que não são ceifadas, mas puxadas ou arrancadas, as quais, embora saudáveis, não eram naturalmente feitas para lhes tornar mais robustos do que os outros”. DAP 27.1
Se os dez dias de teste dessa dieta apresentassem um resultado favorável, teriam permissão para continuar com ela ao longo de todo o período de treinamento para o serviço do palácio. A melhora em aparência e o aumento da força que ocorreram durante esses dez dias dificilmente poderia ser atribuída ao resultado natural da alimentação, pois ela não produziria efeitos tão marcantes dentro de um período tão curto. É muito mais natural concluir que os resultados foram produzidos por intervenção especial do Senhor, como sinal de Sua aprovação com relação ao caminho que eles escolheram, o qual, caso tivesse continuidade, levaria, no decorrer do tempo, ao mesmo resultado pela operação natural das leis do organismo. DAP 27.2
VERSÍCULO 17. Ora, a estes quatro jovens Deus deu o conhecimento e a inteligência em toda cultura e sabedoria; mas a Daniel deu inteligência de todas as visões e sonhos. 18. Vencido o tempo determinado pelo rei para que os trouxessem, o chefe dos eunucos os trouxe à presença de Nabucodonosor. 19. Então, o rei falou com eles; e, entre todos, não foram achados outros como Daniel, Hananias, Misael e Azarias; por isso, passaram a assistir diante do rei. 20. Em toda matéria de sabedoria e de inteligência sobre que o rei lhes fez perguntas, os achou dez vezes mais doutos do que todos os magos e encantadores que havia em todo o seu reino. 21. Daniel continuou até ao primeiro ano do rei Ciro. DAP 27.3
Ao que parece, somente Daniel recebeu inteligência em sonhos e visões. Mas o agir do Senhor com Daniel nesse aspecto não é sinal de que os outros fossem menos aceitos a Seus olhos. A preservação em meio à fornalha ardente foi a mais forte evidência do favor divino que eles poderiam ter. É provável que Daniel tivesse algumas qualidades naturais que o tornavam particularmente apto para essa obra especial. DAP 27.4
O rei continuou a demonstrar o mesmo interesse pessoal pelos jovens que havia tido no início. Ao fim dos três anos, chamou-os para uma entrevista particular. Ele precisava saber em primeira mão como haviam se saído e que grau de proficiência tinham alcançado. Essa entrevista também mostra que o rei era um homem bem versado em todas as artes e ciências dos caldeus; caso contrário, não seria qualificado para examinar outros nesses quesitos. Em resultado, identificando o mérito onde quer que ele fosse encontrado, sem se importar com religião ou nacionalidade, ele reconheceu que os quatro hebreus eram dez vezes superiores a qualquer um de sua própria terra. DAP 27.5
E acrescenta-se que Daniel continuou até o primeiro ano do rei Ciro. Esse é um exemplo do uso da palavra até, que ocasionalmente aparece nos escritos sagrados. Não quer dizer que ele não continuou além do primeiro ano de Ciro, pois ele viveu alguns anos após o início de seu reinado, mas é a esse momento que o autor desejou direcionar nossa atenção de maneira especial, pois foi a época em que os judeus cativos foram libertos. Um uso semelhante da palavra se encontra em Salmo 112:8 e Mateus 5:18. DAP 27.6