Daniel e Apocalipse
Daniel 11 — Uma profecia literal
VERSÍCULO 1. Mas eu, no primeiro ano de Dario, o medo, me levantei para o fortalecer e animar. 2. Agora, eu te declararei a verdade: eis que ainda três reis se levantarão na Pérsia, e o quarto será cumulado de grandes riquezas mais do que todos; e, tornado forte por suas riquezas, empregará tudo contra o reino da Grécia. DAP 187.1
Adentramos agora uma profecia sobre acontecimentos futuros que não se encontra revestida por imagens e símbolos, como as visões dos capítulos 2, 7 e 8, mas é apresentada, em sua maior parte, em linguagem clara. Muitos dos importantes eventos da história mundial, desde os dias de Daniel até o fim do mundo, recebem destaque. Bispo Newton afirma que não é inadequado afirmar que esta profecia consiste em um comentário e em uma explicação da visão do capítulo 8. Tal declaração revela como ele percebia com clareza a conexão entre essa visão e o restante do livro. DAP 187.2
O anjo, depois de contar que, no primeiro ano de Dario, se levantou para fortalecê-lo e animá-lo, dirige a atenção de Daniel para o futuro. Três reis se levantariam na Pérsia. Levantar-se significa reinar; assim, três reis deveriam reinar na Pérsia. Trata-se, sem dúvida, de uma referência aos sucessores imediatos de Ciro. Foram eles: 1) Cambises, filho de Ciro; 2) Esmérdis, um impostor; 3) Dario Histaspes. DAP 187.3
“O quarto será cumulado de grandes riquezas mais do que todos”. O quarto rei depois de Ciro foi Xerxes — mais célebre por suas riquezas do que por sua capacidade de liderança –, notável na história pela campanha pomposa que organizou contra a Grécia e seu fracasso completo nessa empreitada. Ele empregaria tudo contra o reino da Grécia. Nunca antes houvera um recrutamento tão grande de homens para fins bélicos e nunca houve desde então. De acordo com Heródoto, que viveu nessa época, o exército de Xerxes era formado por mais de 5 milhões de homens — precisamente 5.283.220. Não se contentando em reunir apenas o oriente, alistou os cartaginenses do ocidente a seu serviço, os quais levaram para o campo de batalha um exército de mais de 300 mil homens, aumentando o total das forças para o número extraordinário de mais de 5 milhões e meio. Conta-se que, quando Xerxes olhou para o vasto agrupamento, chorou ao pensar que, em cem anos, nenhum daqueles homens estaria vivo. DAP 187.4
VERSÍCULO 3. Depois, se levantará um rei poderoso, que reinará com grande domínio e fará o que lhe aprouver. 4. Mas, no auge, o seu reino será quebrado e repartido para os quatro ventos do céu; mas não para a sua posteridade, nem tampouco segundo o poder com que reinou, porque o seu reino será arrancado e passará a outros fora de seus descendentes. DAP 187.5
Os fatos narrados nesses versículos apontam claramente para Alexandre e a divisão de seu império (ver os comentários sobre Daniel 8:8). Xerxes foi o último rei persa a invadir a Grécia. A profecia, portanto, pula nove sucessores de Xerxes no império persa e já apresenta Alexandre, o Grande. Depois de conquistar a Pérsia, Alexandre “se tornou o monarca absoluto desse império, abrangendo um território maior do que o governado por qualquer um dos reis persas” (Prideaux, vol. 1, p. 378). Seu domínio era grande, incluindo “a maior parte do mundo habitado conhecido na época”, e ele fazia o que lhe aprazia. Suas vontades o levaram, em 323 a.C., a um excesso de bebedeira, cujo resultado foi uma morte insensata. Então todos os seus projetos ambiciosos e cheios de vanglória caíram em um eclipse repentino, súbito e total. O reino foi dividido, mas não para sua posteridade. Foi separado para outros de fora de sua família. Quinze anos após sua morte, toda sua posteridade fora erradicada, vítima da inveja e da ambição de seus principais generais. Não restou ninguém da raça de Alexandre sobre a face da Terra. Como foi curta a transição do mais elevado cume da glória terrena para as profundezas mais baixas da morte e do esquecimento. O reino foi dividido em quatro partes, das quais se apropriaram os generais mais capazes de Alexandre, ou, talvez, os mais ambiciosos e sem princípios — Cassandro, Lisímaco, Seleuco e Ptolomeu. DAP 188.1
VERSÍCULO 5. O rei do Sul será forte, como também um de seus príncipes; este será mais forte do que ele, e reinará, e será grande o seu domínio. DAP 188.2
O restante do capítulo faz diversas referências ao rei do norte e ao rei do sul. Logo, torna-se essencial para a compreensão da profecia identificar esses poderes com clareza. Quando o império de Alexandre foi dividido, as diferentes partes foram repartidas para os quatro ventos do céu, oeste, norte, leste e sul. É claro que tais divisões devem ser consideradas do ponto de vista da Palestina, a terra natal do profeta. A divisão do império a oeste da Palestina constituiria o reino do ocidente; a que fica ao norte, o reino do norte, a que fica a leste, o reino do oriente; a que fica ao sul, o reino do sul. As divisões do reino de Alexandre, do ponto de vista da Palestina, se situam da seguinte forma: Cassandro ficou com a Grécia e as terras adjacentes, a oeste; Lisímaco ficou com a Trácia, que na época incluía a Ásia Menor, e as terras em torno do Helesponto e Bósforo, que se localizam ao norte da Palestina; Seleuco ficou com a Síria e Babilônia, que se encontravam principalmente a leste; e Ptolomeu ficou com o Egito e as terras vizinhas, ao sul. DAP 188.3
Durante as guerras e revoluções que se seguiram por muitas eras, tais fronteiras geográficas sofreram frequentes mudanças ou obliterações; antigos limites foram eliminados e novos foram instituídos. A despeito das mudanças, porém, essas primeiras divisões do império deveriam determinar o nome que tais porções territoriais receberiam no futuro. Caso contrário, não teríamos padrão nenhum para testar a aplicação da profecia. Em outras palavras, qualquer poder, em qualquer época, que ocupasse o território que primeiramente constituiu o reino do norte, tal poder, contanto que ocupasse esse território, seria chamado de rei do norte; e qualquer poder que ocupasse aquilo que primeiramente constituiu o rei do sul, esse poder seria, nesse período específico, o rei do sul. Fazemos referência apenas a esses dois porque são os únicos mencionados nesta profecia e porque, na realidade, praticamente todo o império de Alexandre se resumiu, por fim, a essas duas divisões. DAP 188.4
Cassandro logo foi conquistado por Lisímaco; e seu reino, a Grécia e a Macedônia, anexado à Trácia. E Lisímaco, por sua vez, foi conquistado por Seleuco, sendo a Macedônia e a Trácia anexadas à Síria. DAP 189.1
Tais fatos preparam o caminho para a aplicação do texto a nossa frente. O rei do sul, o Egito, seria forte. Ptolomeu anexou o Chipre, a Fenícia, a Cária, Cirene, bem como muitas ilhas e cidades ao Egito. Assim seu reino se fortaleceu. Mas outro dos generais de Alexandre é introduzido na expressão “um de seus príncipes”. A Septuaginta traduz o versículo da seguinte maneira: “E o rei do sul será forte, e um de seus príncipes [de Alexandre] será forte sobre ele”. Tal referência deve ser a Seleuco, que, conforme já mencionado, anexou a Macedônia e a Trácia à Síria, tornando-se assim o possuidor de três das quatro partes do domínio de Alexandre, conseguindo estabelecer um reino mais poderoso que o do Egito. DAP 189.2
VERSÍCULO 6. Mas, ao cabo de anos, eles se aliarão um com o outro; a filha do rei do Sul casará com o rei do Norte, para estabelecer a concórdia; ela, porém, não conservará a força do seu braço, e ele não permanecerá, nem o seu braço, porque ela será entregue, e bem assim os que a trouxeram, e seu pai, e o que a tomou por sua naqueles tempos. DAP 189.3
Aconteciam guerras frequentes entre os reis do Egito e da Síria. Isso ocorreu, em especial, com o segundo rei do Egito, Ptolomeu Filadelfo, e Antíoco Teo, o terceiro rei da Síria. Por fim, fizeram um acordo de paz, sob a condição de que Antíoco Teos repudiasse sua esposa Laódice e seus dois filhos, para se casar com Berenice, filha de Ptolomeu Filadelfo. Ptolomeu levou então sua filha para Antíoco, cobrindo-a com um dote generosíssimo. DAP 189.4
“Ela, porém, não conservará a força do seu braço”, isto é, seus interesses e o poder junto a Antíoco. E foi justamente isso que aconteceu, pois, pouco tempo depois, em um acesso sentimental, Antíoco levou de volta para a corte a ex-esposa Laódice e os filhos. Então, diz a profecia, “ele [Antíoco] não permanecerá, nem o seu braço”, ou semente. Quando Laódice foi restaurada ao favor e ao poder, temeu que, na volubilidade de seu temperamento, Antíoco a lançasse em desgraça novamente, chamando Berenice de volta. Crendo que nada menos que sua morte seria uma garantia eficaz contra tal possibilidade, tramou seu envenenamento pouco tempo depois. Tampouco seu braço, ou seja, sua descendência por meio de Berenice, o sucedeu no trono, pois Laódice conseguiu manobrar as coisas de tal modo que o trono foi assegurado a seu filho mais velho, Seleuco Calínico. DAP 189.5
“Porque ela [Berenice] será entregue.” Laódice, não se satisfazendo com o envenenamento do próprio esposo Antíoco, tramou o assassinato de Berenice. “E bem assim os que a trouxeram”. Muitas das mulheres e servas egípcias que tentaram defender Berenice foram mortas juntamente com ela. “E seu pai”. Na margem [da KJV], lemos: “quem ela gerou”, isto é, o filho dela, que foi assassinado na mesma época por ordem de Laódice. “E o que a tomou por sua naqueles tempos”, seu marido Antíoco, conforme supõe Jerônimo, ou aqueles que ficaram do lado dela e a defenderam. DAP 189.6
Mas tal maldade não poderia ficar impune por muito tempo, conforme prediz a profecia e a história comprova. DAP 190.1
VERSÍCULO 7. Mas, de um renovo da linhagem dela, um se levantará em seu lugar, e avançará contra o exército do rei do Norte, e entrará na sua fortaleza, e agirá contra eles, e prevalecerá. 8. Também aos seus deuses com a multidão das suas imagens fundidas, com os seus objetos preciosos de prata e ouro levará como despojo para o Egito; por alguns anos, ele deixará em paz o rei do Norte. 9. Mas, depois, este avançará contra o reino do rei do Sul e tornará para a sua terra. DAP 190.2
Esse renovo da mesma raiz de Berenice foi seu irmão, Ptolomeu Evérgeta. Assim que sucedeu ao pai, Ptolomeu Filadelfo, no trono do Egito, inflamado pelo desejo de se vingar da morte da irmã Berenice, recrutou um exército imenso e invadiu o território do rei do norte, isto é, Seleuco Calínico, o qual, juntamente com a mãe Laódice, reinava na Síria. E prevaleceu contra eles, chegando a conquistar a Síria, a Cilícia, as partes superiores além do Eufrates e quase toda a Ásia. Contudo, ao ficar sabendo que uma sedição se levantara no Egito, exigindo seu retorno para casa, ele saqueou o reino de Seleuco, levando 40 mil talentos de prata e utensílios preciosos, bem como 2.500 imagens de deuses. Dentre elas, se encontravam os ídolos que Cambises havia tomado do Egito no passado e levado para a Pérsia. Os egípcios, completamente dados à idolatria, concederam a Ptolomeu o título de Evérgeta, ou o Benfeitor, em elogio por, depois de tantos anos, ter restaurado seus deuses cativos. DAP 190.3
Segundo bispo Newton, esse é o relato de Jerônimo, extraído dos historiadores antigos. Mas há autores — cujas obras ainda se encontram disponíveis para consulta — que confirmam vários dos mesmos detalhes. Apiano nos informa que Laódice matou Antíoco e, depois dele, tanto Berenice quanto o filho. Então Ptolomeu, filho de Filadelfo, desejoso de se vingar de tais assassinatos, invadiu a Síria, matou Laódice e avançou até Babilônia. Políbio conta que Ptolomeu, cognominado Evérgeta, extremamente inflamado pelo tratamento cruel que sua irmã Berenice recebera, marchou com um exército até a Síria e tomou a cidade de Selêucia, que foi guardada por alguns anos depois disso por forças egípcias. Dessa maneira ele entrou na fortaleza do rei do norte. Polieno afirma que Ptolomeu se tornou senhor de toda a terra que se estendia do monte Tauro até a Índia, sem guerra ou batalha; mas, por equívoco, atribui o feito ao pai, em lugar do filho. Justino conta que, caso Ptolomeu não tivesse retornado ao Egito por causa de uma revolta interna, ele teria possuído todo o reino de Seleuco. Assim o rei do sul entrou no domínio do rei do norte e retornou à sua terra, conforme o profeta havia pretido. E também continuou por mais tempo que o rei do norte, pois Seleuco Calínico morreu no exílio, ao cair do próprio cavalo. Depois disso, Ptolomeu Evérgeta ainda viveu por mais quatro ou cinco anos. DAP 190.4
VERSÍCULO 10. Os seus filhos farão guerra e reunirão numerosas forças; um deles virá apressadamente, arrasará tudo e passará adiante; e, voltando à guerra, a levará até à fortaleza do rei do Sul. DAP 191.1
A primeira parte deste versículo fala de filhos, no plural; já a última, de um deles, no singular. Os filhos de Seleuco Calínico foram Seleuco Cerauno e Antíoco Magno. Ambos se envolveram com zelo na obra de defender e vingar a causa do pai e de seu país. O mais velho dos dois, Seleuco, assumiu primeiro o trono. Ele reuniu uma grande multidão para recuperar os domínios do pai; mas por ser um príncipe fraco e tímido, tanto física quanto moralmente, sem dinheiro e incapaz de manter a obediência do exército, foi assassinado por envenenamento por dois de seus generais após um reinado inglório de dois ou três anos. Seu irmão mais hábil, Antíoco Magno, foi proclamado rei em seu lugar, assumiu o comando do exército, recobrou a Selêucia e recuperou a Síria, tornando-se senhor de alguns lugares por tratado e de outros, pela força das armas. Uma trégua se seguiu, na qual os dois lados fizeram um acordo de paz, embora preparados para a guerra. Depois disso, Antíoco voltou e venceu Nicolau, o general egípcio, em batalha, chegando a pensar em invadir até mesmo o Egito. Ele certamente foi o cumprimento da profecia que dizia que “um deles virá apressadamente, arrasará tudo e passará adiante”. DAP 191.2
VERSÍCULO 11. Então, este se exasperará, sairá e pelejará contra ele, contra o rei do Norte; este porá em campo grande multidão, mas a sua multidão será entregue nas mãos daquele. DAP 191.3
Ptolomeu Filópator sucedeu ao pai Evérgeta no trono do Egito. Foi coroado pouco depois de Antíoco Magno suceder ao irmão no governo da Síria. Era um rei bastante dado aos prazeres e vícios, mas finalmente foi despertado diante da perspectiva de uma invasão ao Egito por Antíoco. De fato, ele “se exasperou” pelas perdas que havia sofrido e pelo perigo que o ameaçava. Por isso saiu do Egito com um exército numeroso a fim de deter o progresso do rei da Síria. O rei do norte também reuniria uma grande multidão. Segundo Políbio, o exército de Antíoco contava com 62 mil na infantaria, 6 mil na cavalaria e 102 montando elefantes. Em batalha, Antíoco foi derrotado e seu exército, em conformidade com a profecia, entregue nas mãos do rei do sul. Dez mil soldados de infantaria e 3 mil da cavalaria foram mortos. Mais de 4 mil foram levados prisioneiros. Já do exército de Ptolomeu, somente 700 cavaleiros perderam a vida e mais ou menos o dobro de soldados da infantaria. DAP 191.4
VERSÍCULO 12. A multidão será levada, e o coração dele se exaltará; ele derribará miríades, porém não prevalecerá. DAP 191.5
Ptolomeu não tinha a prudência necessária para fazer bom uso de sua vitória. Caso tivesse aproveitado o sucesso, provavelmente teria se tornado senhor de todo o reino de Antíoco. Mas se contentou em simplesmente fazer algumas ameaças e firmou um tratado de paz, a fim de poder se entregar à indulgência ininterrupta e descontrolada de suas paixões vulgares. Assim, depois de conquistar os inimigos, foi vencido pelos próprios vícios e, esquecendo-se do grande nome que poderia ter consolidado, gastava o tempo em festas e devassidão. DAP 191.6
Seu coração se exaltou por causa do sucesso, mas ele estava longe de se fortalecer com ele. Por causa do uso inglório que fez da fama, seus próprios súditos se rebelaram contra ele. Mas a exaltação de seu coração se manifestou de maneira especial no tratamento que dispensava aos judeus. Ao ir a Jerusalém, ofereceu sacrifícios ali e quis muito entrar no lugar santíssimo do templo, ato contrário à lei e à religião do lugar. Depois de ser impedido com grande dificuldade, foi embora espumando de raiva de toda a nação judaica. Iniciou de imediato uma perseguição terrível e implacável. Em Alexandria, onde moravam judeus desde a época de Alexandre, desfrutando os privilégios dos cidadãos mais favorecidos, foram mortos 40 mil, segundo Eusébio, ou 60 mil, de acordo com Jerônimo, nessa perseguição. Sem dúvida, a rebelião dos egípcios e esse massacre dos judeus não contribuíram para fortalecê-lo no reino, mas, em vez disso, quase conseguiram arruiná-lo por completo. DAP 192.1
VERSÍCULO 13. Porque o rei do Norte tornará, e porá em campo multidão maior do que a primeira, e, ao cabo de tempos, isto é, de anos, virá à pressa com grande exército e abundantes provisões. DAP 192.2
Os acontecimentos preditos nestes versículos se cumpririam “ao cabo de tempos, isto é, de anos”. A paz firmada entre Ptolomeu Filópator e Antíoco durou 14 anos. Nesse meio tempo, Ptolomeu morreu de intemperança e excessos. Foi sucedido pelo filho Ptolomeu Epifanes, uma criança de quatro ou cinco anos de idade na época. Nesse mesmo período, Antíoco conseguiu suprimir a rebelião em seu reino, consolidando a obediência na parte oriental de seu império. Estava, portanto, livre para qualquer empreitada quando o jovem Epifanes subiu ao trono do Egito. Pensando que era uma oportunidade boa demais para ampliar seus domínios, que não poderia deixar escapar, reuniu um exército imenso, uma “multidão maior do que a primeira” (pois havia recrutado muitas forças e adquirido grandes riquezas em sua expedição no oriente) e marchou contra o Egito, na expectativa de obter uma vitória fácil sobre o rei menino. Veremos agora como ele se saiu; pois neste ponto surgem novos complicadores na história desses reinos, e novos atores entram em cena. DAP 192.3
VERSÍCULO 14. Naqueles tempos, se levantarão muitos contra o rei do Sul; também os dados à violência dentre o teu povo [os saqueadores de teu povo, KJV] se levantarão para cumprirem a profecia, mas cairão. DAP 192.4
Antíoco não foi o único que se levantou contra o menino Ptolomeu. Agátocles, seu primeiro ministro, guardião da tutela do rei e administrando as questões do reino em lugar do monarca, era tão dissoluto e orgulhoso no exercício do poder que acabou sendo alvo de rebelião por parte das províncias até então súditas do Egito. O país em si foi afligido por sedições. E os alexandrinos se levantaram contra Agátocles, provocando sua morte, juntamente com a de sua irmã, sua mãe e seus associados. Na mesma época, Filipe, rei da Macedônia, formou uma coalizão com Antíoco com o objetivo de dividir os domínios de Ptolomeu entre eles, cada um se propondo a ficar com as partes mais próximas e convenientes. Temos aqui uma investida contra o rei do sul suficiente para cumprir a profecia, bem como os próprios eventos que, sem sombra de dúvida, a profecia tinha intenção de destacar. DAP 192.5
Um novo poder é apresentado, “os saqueadores de teu povo” [KJV]; literalmente, diz o bispo Newton, “os esmagadores do teu povo”. Bem distante, às margens do rio Tibre, um reino vinha alimentando projetos ambiciosos e desígnios sombrios. Pequeno e fraco a princípio, cresceu com rapidez extraordinária em força e vigor, atacando com cuidado aqui e ali a fim de testar sua proeza e a resistência de seu exército beligerante, até que, consciente de seu poder, ousadamente levantou a cabeça entre as nações da Terra e se apropriou, com mão invencível, do leme com que governavam. Assim se destaca o nome de Roma na página da história, destinada, por longas eras, a controlar as questões mundiais, exercendo influência poderosa sobre as nações, até o fim dos tempos. DAP 193.1
Roma falou. Então a Síria e a Macedônia logo viram uma mudança se encaminhando no cenário de seu sonho. Os romanos interferiram em favor do jovem rei do Egito, determinados a protegê-lo da ruína tramada por Antíoco e Filipe. Isso foi em 200 a.C., uma das primeiras interferências importantes dos romanos sobre a administração síria e egípcia. Rollin faz um relato sucinto dessa situação: DAP 193.2
Antíoco, rei da Síria, e Filipe, da Macedônia, durante o reinado de Ptolomeu Filópater, haviam demonstrado o mais forte zelo pelos interesses desse monarca e estavam prontos para ajudá-lo em todas as ocasiões. Todavia, assim que ele morreu, deixando para trás um jovem garoto, o qual não deveria ter sido incomodado na posse do reino do pai, em respeito às leis da humanidade e da justiça, imediatamente se uniram em uma aliança criminosa, incentivando um ao outro a destronar o herdeiro legítimo e dividir seus domínios entre eles. Filipe ficaria com a Cária, a Líbia, Cirenaica e o Egito; e Antíoco com todo o resto. Com isso em mente, este invadiu a Celessíria e a Palestina. Em menos de duas campanhas, conquistou a totalidade dessas províncias, com todas as suas cidades e territórios. Políbio diz que a culpa deles não teria ficado tão evidente se, como tiranos, houvessem tentado justificar os crimes com alguma pretensão especial. Em vez disso, porém, a injustiça e a crueldade dos dois foram tão gritantes que a eles se aplicou aquilo que se costuma dizer acerca dos peixes: os maiores, embora da mesma espécie, fazem os menores de presa. O mesmo autor continua afirmando que, ao verem as leis mais sagradas da sociedade sendo tão abertamente violadas, as pessoas seriam tentadas a acusar a Providência de ser indiferente e insensível aos crimes mais horrendos. Porém, Sua conduta foi plenamente justificada ao punir esses dois reis, de acordo com o que mereciam, e ao fazer deles um exemplo que viesse a impedir, em eras futuras, outros de seguir o mesmo curso de ação. Pois enquanto tramavam destronar um menino fraco e indefeso, fazendo picadinho dele, a Providência levantou os romanos, que derrotaram por completo os reinos de Filipe e Antíoco, reduzindo seus sucessos a uma calamidade quase tão grande quanto a que haviam planejado infligir sobre o menino rei (Ancient History, livro 18, cap. 50). DAP 193.3
“Para cumprirem a profecia”. Como os romanos aparecem com maior proeminência do que qualquer outro povo no tema da profecia de Daniel, sua primeira interferência nas questões desses reinos é chamada de cumprimento, ou demonstração, da verdade da visão que predizia a existência de tal poder. DAP 194.1
“Mas cairão”. Alguns dizem que estas palavras se referem àqueles mencionados na primeira parte do versículo, que se levantariam contra o rei do sul; outros, aos “saqueadores” [KJV] do povo de Daniel, os romanos. Em ambos os casos, é verdade. Se a alusão for àqueles que conspiraram contra Ptolomeu, basta dizer que caíram rapidamente. Caso se aplique aos romanos, a profecia simplesmente apontava para o futuro, para o período de sua queda. DAP 194.2
VERSÍCULO 15. O rei do Norte virá, levantará baluartes e tomará cidades fortificadas; os braços do Sul não poderão resistir, nem o seu povo escolhido, pois não haverá força para resistir. DAP 194.3
A tutela do jovem rei do Egito foi confiada, pelo senado romano, a Marco Emílio Lépido, o qual instituiu Aristômene, ministro idoso e experiente daquela corte, como guardião do monarca. Seu primeiro ato foi tomar providências contrárias à ameaça de invasão dos dois reis confederados, Filipe e Antíoco. DAP 194.4
Para esse fim, enviou Escopas, célebre general da Etólia, então a serviço dos egípcios, para sua terra natal, a fim de recrutar reforços para o exército. Depois de montar um exército, marchou até a Palestina e a Celessíria, enquanto Antíoco se encontrava em guerra contra Átalo na Ásia Menor, e sujeitou toda a Judeia à autoridade do Egito. DAP 194.5
Assim as coisas alcançaram as condições necessárias para o cumprimento do versículo diante de nós. Pois Antíoco, desistindo da guerra contra Átalo, porque assim o exigiram os romanos, agiu o mais rapidamente possível para recuperar a Palestina e a Celessíria das mãos dos egípcios. Escopas foi enviado para se opor a ele. Perto das nascentes do Jordão, os dois exércitos se enfrentaram. Escopas foi derrotado, perseguido até Sidom e firmemente sitiado ali. Três dos generais mais habilidosos do Egito, com suas melhores forças, foram enviados para levantar o cerco, mas não obtiveram êxito. Por fim, Escopas, deparando com o fantasma medonho e intangível da fome, um inimigo que foi incapaz de deter, se viu forçado a se render diante do desonroso termo de ter apenas a vida poupada. Depois disso, ele e seus 10 mil homens sofreram a vergonha de partir nus e destituídos. Nessa ocasião, as mais fortificadas cidades foram tomadas pelo rei do norte; pois Sidom era, tanto em localização quanto em defesa, uma das cidades mais fortes da época. Nesse momento, os braços do Sul fracassaram em resistir, bem como o povo que o rei do sul escolhera, a saber, Escopas e suas forças da Etólia. DAP 194.6
VERSÍCULO 16. O que, pois, vier contra ele fará o que bem quiser, e ninguém poderá resistir a ele; estará na terra gloriosa, e tudo estará em suas mãos. DAP 194.7
Embora o Egito não tenha conseguido resistir a Antíoco, o rei do norte, este, por sua vez, não conseguiu resistir aos romanos, que agora o atacaram. Os reinos não foram mais capazes de resistir a esse poder em ascensão. A Síria foi conquistada e anexada ao império romano, quando Pompeu, em 65 a.C., destituiu Antíoco Asiático de suas terras e reduziu a Síria a uma província romana. DAP 194.8
O mesmo poder também se dirigiria à terra gloriosa e a consumiria. Roma se ligou ao povo de Deus, os judeus, por aliança em 161 a.C. Dessa data em diante, ocupa um lugar proeminente no calendário profético. Todavia, só adquiriu jurisdição sobre a Judeia por meio de conquista em 63 a.C.; depois disso, da maneira mencionada a seguir. DAP 195.1
Enquanto Pompeu retornava de sua expedição contra Mitrídates, rei de Ponto, dois concorrentes, Hircano e Aristóbulo, lutavam pela coroa da Judeia. Pompeu deparou com a contenda entre ambos e logo percebeu a injustiça das reivindicações de Aristóbulo ao trono, mas preferiu adiar a decisão sobre o assunto para depois da expedição à Arábia, que desejava fazer havia tanto tempo, prometendo retornar depois e resolver a questão da forma mais justa e apropriada. Aristóbulo, entendendo quais eram os reais sentimentos de Pompeu, voltou correndo para a Judeia, armou seus súditos e se preparou para uma defesa vigorosa, determinado a manter a coroa a todo custo, a qual previu que seria cedida a outro. Pompeu seguiu de perto o fugitivo. À medida que se aproximava de Jerusalém, Aristóbulo, começando a se arrepender de sua escolha, foi encontrá-lo e tentou resolver a questão prometendo submissão total e grandes somas de dinheiro. Pompeu aceitou a proposta e enviou Gabínio liderando um destacamento de soldados para receber o montante. No entanto, quando o tenente-general chegou a Jerusalém, encontrou as portas fechadas para ele, e lhe disseram, de cima dos muros, que a cidade não cumpriria o acordo. DAP 195.2
Pompeu não aceitaria ser enganado dessa maneira sem infligir a devida punição, por isso colocou Aristóbulo, que ficara sob sua custódia, atrás das grades. Marchou, então, imediatamente contra Jerusalém com todo seu exército. Os partidários de Aristóbulo eram favoráveis à defesa do local; os de Hircano, à abertura dos portões. Como os últimos eram a maioria, prevaleceram e Pompeu entrou livremente. Por isso, os adeptos de Aristóbulo se retiraram para o monte do templo, tão determinados a defender o lugar quanto Pompeu a destruí-lo. Ao cabo de três meses, criou-se uma brecha na parede de tamanho suficiente para um ataque, e o lugar sucumbiu ao fio da espada. No terrível extermínio que se seguiu, 12 mil pessoas foram mortas. Foi uma cena comovente, conta o historiador, ver os sacerdotes, que ministravam, na ocasião, o cerimonial divino, dando continuidade, com mãos calmas e propósito inabalável, a seu trabalho costumeiro, aparentemente inconscientes do forte tumulto, embora à sua volta seus amigos estivessem sendo executados e o próprio sangue deles com frequência se misturasse ao dos sacrifícios que ofereciam. DAP 195.3
Após dar fim à guerra, Pompeu demoliu os muros de Jerusalém, transferiu várias cidades da jurisdição da Judeia para a Síria e impôs tributos aos judeus. Assim, pela primeira vez, Jerusalém foi colocada, por meio de conquista, nas mãos do poder que deteria a “terra gloriosa” em suas garras de ferro até consumi-la por completo. DAP 195.4
VERSÍCULO 17. Resolverá vir com a força de todo o seu reino, e entrará em acordo com ele, e lhe dará uma jovem em casamento, para destruir o seu reino; isto, porém, não vingará, nem será para a sua vantagem. DAP 196.1
Bispo Newton apresenta outra versão para este versículo, que parece expressar o sentido com mais clareza: “Ele também se determinará a entrar por meio da força em todo o reino”. O versículo 16 nos traz até a conquista da Síria e da Judeia pelos romanos. Roma já havia conquistado a Macedônia e a Trácia. O Egito agora era tudo que restava de “todo o reino” de Alexandre, pois ainda não se sujeitara ao poder romano, o qual agora resolve invadir o país usando a força. DAP 196.2
Ptolomeu Auleta morreu em 51 a.C. Deixou a coroa e o reino do Egito para o filho e a filha mais velhos, Ptolomeu e Cleópatra. Seu testamento designava que eles se casariam um com o outro e reinariam juntos. Como eram jovens, foram colocados sob a tutela dos romanos. O povo romano aceitou a incumbência e nomeou Pompeu guardião dos jovens herdeiros do Egito. DAP 196.3
Não demorou muito para surgir uma discordância entre Pompeu e César. Foi travada então a célebre batalha de Farsalos entre os dois generais. Pompeu foi derrotado e fugiu para o Egito. César imediatamente o seguiu até lá, mas, antes que este chegasse, Pompeu foi assassinado da forma mais vil por Ptolomeu, de quem fora nomeado guardião. Então César assumiu o posto que fora dado a Pompeu como guardião de Ptolomeu e Cleópatra. Encontrou o Egito em comoção devido a tumultos internos, Ptolomeu e Cleópatra hostis um ao outro e esta destituída de sua parte no governo. Apesar disso, não hesitou em se estabelecer em Alexandria com seu pequeno exército, 800 cavaleiros e 3.200 soldados de infantaria, familiarizar-se com a disputa e cuidar de resolvê-la. Como os problemas cresciam diariamente, César percebeu que sua pequena força era insuficiente para manter sua posição. Impossibilitado de deixar o Egito por causa do vento norte que soprava naquela época do ano, enviou mensagem para a Ásia, ordenando que todas as tropas que ele possuía naquela região fossem auxiliá-lo o mais rápido possível. DAP 196.4
Da maneira mais arrogante possível, decretou que Ptolomeu e Cleópatra deveriam dispensar seus exércitos, comparecer diante dele para resolver as diferenças e acatar sua decisão. Como o Egito era um reino independente, esse decreto altivo foi considerado uma afronta a sua dignidade real. Então os egípcios, absolutamente inflamados, correram para empunhar armas. César respondeu que estava agindo daquela maneira por causa do testamento do pai deles, Auleta, o qual colocara os filhos sob a tutela do senado e do povo romano, cuja autoridade integral se encontrava agora investida em sua pessoa como cônsul; e, sendo guardião dos dois, ele tinha o direito de arbitrar entre ambos. DAP 196.5
A questão finalmente lhe foi apresentada e advogados foram nomeados para defender a causa das duas partes. Cleópatra, ciente do ponto fraco do grande conquistador romano, julgou que a beleza de sua presença seria mais eficaz em garantir um julgamento favorável a ela do que qualquer argumento que um advogado apresentasse. A fim de chegar à presença dele sem ser notada, recorreu ao seguinte estratagema: cobrindo-se completamente com um fardo de roupas, Apolodoro, seu servo siciliano, o enrolou em um pano, amarrou-o com uma tira de couro e o colocou sobre seus ombros hercúleos. Dirigiu-se então aos aposentos de César. Afirmando ter um presente para o general romano, foi admitido às portas da fortaleza, entrou na presença de César e depositou o fardo a seus pés. Quando César abriu o embrulho vivo, eis que a bela Cleópatra estava a sua frente. Longe de se desagradar do estratagema e, possuidor do caráter descrito em 2 Pedro 2:14, a primeira visão de uma mulher tão bela provocou todo o efeito que ela desejara, conta Rollin. DAP 196.6
Por fim, César decretou que irmão e irmã deveriam ocupar o trono conjuntamente, em conformidade com o desígnio do testamento. Potino, ministro chefe de estado, que desempenhara um papel fundamental na expulsão de Cleópatra do trono, temeu as consequências de sua restauração. Por isso, começou a despertar suspeita e hostilidade contra César, insinuando, em meio ao populacho, que ele tinha a intenção de, em dado momento, dar o poder apenas a Cleópatra. Uma revolta aberta logo se seguiu. Áquila, à frente de 20 mil homens, marchou para tirar César de Alexandria. Dispondo seu pequeno grupo de homens habilmente pelas ruas e alamedas da cidade, César não teve dificuldades em conter o ataque. Os egípcios resolveram destruir a frota do general romano. Este respondeu incendiando a deles. Algumas das embarcações em chamas foram à deriva para perto do cais. Por isso, várias construções da cidade pegaram fogo, e a célebre biblioteca de Alexandria, contendo quase 400 mil volumes, foi destruída. DAP 197.1
Como a guerra se tornava cada vez mais ameaçadora, César pediu ajuda a todos os países vizinhos. Uma grande frota da Ásia Menor foi auxiliá-lo. Mitrídates partiu para o Egito com um exército recrutado na Síria e na Cilícia. Antípatro, o idumeu, se uniu a ele, com 3 mil judeus. Os judeus, que detinham as passagens para o Egito, permitiram que os exércitos atravessassem sem qualquer obstáculo. Sem essa cooperação da parte deles, todo o plano poderia ter fracassado. A chegada desse exército decidiu o conflito. Uma batalha decisiva foi travada perto do Nilo, a qual resultou em vitória completa para César. Ptolomeu, ao tentar fugir, foi afogado no rio. Então a Alexandria e todo o Egito se sujeitaram ao vencedor. Roma agora conseguira invadir e absorver todo o reino original de Alexandre. DAP 197.2
Ao falar dos “retos” (ARC), o texto se refere, sem dúvida, aos judeus, que lhe prestaram a assistência já mencionada. Sem isso, ele poderia ter fracassado. Com a ajuda, colocou todo o Egito sob seu poder em 47 a.C. DAP 197.3
“Uma filha das mulheres, para a corromper” (ARC). A paixão de César por Cleópatra, com quem ele teve um filho, é citada pelo historiador como o único motivo para o conquistador ter se envolvido em uma campanha tão perigosa quanto a guerra egípcia. Isso o manteve por muito mais tempo no Egito do que suas obrigações exigiam, passando noites em festas e bebedeiras com a rainha dissoluta. “Mas”, disse o profeta, “ela não subsistirá [‘não permanecerá ao seu lado’ (KJV)], nem será para ele” (ARC). Posteriormente, Cleópatra se uniu a Antônio, inimigo de César Augusto, e exerceu todo o poder dela contra Roma. DAP 197.4
VERSÍCULO 18. Depois, se voltará para as terras do mar e tomará muitas; mas um príncipe fará cessar-lhe o opróbrio e ainda fará recair este opróbrio sobre aquele. DAP 198.1
A guerra contra Fárnaces, rei do Bósforo Cimério, por fim o afastou do Egito. Prideaux conta: “Ao chegar onde o inimigo se encontrava, sem dar nenhuma folga para si, nem para eles, imediatamente atacou e obteve vitória absoluta sobre eles. Relatou o ocorrido a um amigo com estas três palavras: Veni, vidi, vici: Vim, vi e venci”. A última parte desse versículo é um tanto quanto enigmática e há divergência de opinião quanto a sua aplicação. Alguns a aplicam a um momento anterior da vida de César e acreditam que se cumpriu em sua disputa com Pompeu. Mas os eventos anteriores e subsequentes definidos com clareza pela profecia nos compelem a buscar o cumprimento dessa parte da predição entre a vitória sobre Fárnaces e a morte de César em Roma, conforme o versículo seguinte destaca. Uma análise histórica mais completa desse período pode trazer à tona acontecimentos que tirem as dificuldades da aplicação desta passagem. DAP 198.2
VERSÍCULO 19. Então, voltará para as fortalezas da sua própria terra; mas tropeçará, e cairá, e não será achado. DAP 198.3
Após essa conquista, César derrotou os últimos fragmentos do partido de Pompeu, Catão e Cipião, na África, Labieno e Varo na Espanha. Ao voltar para Roma, “as fortalezas da sua própria terra”, foi nomeado ditador perpétuo. O poder e honra a ele concedidos foram tão grandes que ele se tornou, de fato, o soberano absoluto de todo o império. Mas o profeta disse que ele tropeçaria e cairia. Essas palavras sugerem que sua queda seria repentina e inesperada, como a de uma pessoa que tropeça por acidente ao caminhar. Assim esse homem, que guerreou e venceu inúmeras batalhas, tomou mil cidades e tirou a vida de um milhão, duzentos e noventa mil homens, caiu, não durante o estrondo da batalha, nem na hora da luta, mas quando achou que seu caminho estava livre e enfeitado com flores, quando o perigo supostamente estava distante. Pois, quando se assentou dentro do senado em seu trono de ouro e recebeu das mãos daquela instituição o título de rei, o punhal da traição subitamente o atingiu no coração. Cássio, Bruto e outros conspiradores o atacaram e ele caiu, ferido com 23 punhaladas. Assim ele tropeçou e caiu de repente, para não mais ser achado, em 44 a.C. DAP 198.4
VERSÍCULO 20. Levantar-se-á, depois, em lugar dele, um que fará passar um exator pela terra mais gloriosa do seu reino; mas, em poucos dias, será destruído, e isto sem ira nem batalha. DAP 198.5
Augusto César sucedeu ao tio Júlio, que por aquele fora adotado como sucessor. Ele anunciou publicamente o fato de ter sido adotado pelo tio, assumiu o nome dele, acrescentando o de Otaviano. Aliou-se a Marco Antônio e Lépido para vingar a morte de César, criando a forma de governo conhecida como triunvirato. Depois de se consolidar firmemente no império, o senado lhe conferiu o título de Augusto. Como os outros membros do triunvirato haviam morrido, ele se tornou o único governante supremo. DAP 198.6
Ele foi categoricamente um “exator”, ou cobrador de tributos. Lucas, ao falar sobre os acontecimentos ligados à época em que Cristo nasceu, conta: “Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império romano para recensear-se [ser tributada, KJV]” (Lucas 2:1). Esse recenseamento mundial para fins de tributação foi um evento digno de nota. E aquele que o colocou em vigor merece, sem dúvida, o título de “exator” acima de qualquer concorrente. DAP 199.1
O periódico Globe Democrat [Democrata global], de Saint Louis, conforme citado em Current Literature [Literatura atual] de julho de 1895, diz: “César Augusto não foi o benfeitor público conforme costuma ser representado. Foi o mais exigente coletor de impostos que o mundo romano havia visto até então”. DAP 199.2
E ele se levantou “pela terra mais gloriosa do seu reino”. Roma chegou ao auge de sua grandeza e de seu poder. A “era augusta” se tornou uma expressão usada em toda parte para denotar a era áurea da história romana. Roma nunca passou por um momento mais brilhante. A paz foi promovida, a justiça era mantida, os excessos foram freados, a disciplina se estabeleceu e o ensino recebeu incentivos. Durante seu reinado, o templo de Jano foi fechado pela terceira vez desde a fundação de Roma, significando que o mundo inteiro estava em paz. Foi nessa hora tão propícia que nosso Senhor nasceu em Belém. Em pouco menos de 18 anos após a tributação ter ocorrido, os quais pareciam apenas “poucos dias” na perspectiva distante do profeta, morreu Augusto, não consumido pela raiva, nem em batalha, mas pacificamente em sua cama, na cidade de Nola, onde fora buscar repouso e saúde, em 14 d.C., aos 76 anos de idade. DAP 199.3
VERSÍCULO 21. Depois, se levantará em seu lugar um homem vil, ao qual não tinham dado a dignidade real; mas ele virá caladamente e tomará o reino, com intrigas [bajulações, KJV]. DAP 199.4
Tibério César se assentou em seguida no trono romano. Foi elevado a cônsul aos 28 anos de idade. Conta-se que, quando Augusto estava prestes a nomear um sucessor, sua esposa Lívia suplicou que ele escolhesse Tibério (filho dela com um ex-marido); mas o imperador respondeu: “Seu filho é vil demais para vestir a cor púrpura de Roma”. A indicação foi dada a Agripa, cidadão romano muito virtuoso e respeitado. Mas a profecia previra que um homem vil sucederia a Augusto. Agripa morreu e Augusto precisou mais uma vez escolher um sucessor. Lívia intercedeu mais uma vez por Tibério, e Augusto, enfraquecido pela idade e a doença, se deixou lisonjear com mais facilidade e consentiu em nomear como colega e sucessor aquele jovem “vil”. Mas os cidadãos nunca lhe devotaram o amor, o respeito e a “dignidade real” devidos a um soberano justo e fiel. DAP 199.5
Como foi claro o cumprimento da predição de que não lhe dariam dignidade real! Mas ele viria caladamente e tomaria o reino com intrigas. Um parágrafo da Encyclopedia Americana mostra como isso se cumpriu: DAP 200.1
“Durante o restante da vida de Augusto, ele [Tibério] se portou com grande prudência e habilidade, concluindo com grande êxito uma guerra contra os alemães. Após a derrota de Varo e suas legiões, ele foi enviado para deter o progresso dos alemães vitoriosos, tendo agido com o mesmo espírito e prudência. Quando Augusto morreu, conseguiu chegar, sem oposição, à soberania do império, a qual, porém, com sua dissimulação característica, fez questão de recusar, até receber pedidos repetidos do senado subserviente.” DAP 200.2
Dissimulação de sua parte, bajulação por parte do senado servil e a posse do reino sem oposição — tais foram as circunstâncias que acompanharam sua ascensão ao trono e tais eram as circunstâncias que a profecia previra. DAP 200.3
A pessoa que o texto destaca é chamada de “vil”. Seria esse o caráter de Tibério? Deixemos outro parágrafo da Encyclopedia responder: DAP 200.4
Tácito registra os acontecimentos de seu reinado, incluindo a morte suspeita de Germânico, a administração detestável de Sejano, o envenenamento de Druso, com toda a mistura extraordinária de tirania com ocasional sabedoria e bom senso que distinguiu a conduta de Tibério, até sua aposentadoria inglória e dissoluta em 26 d.C., na ilha de Capri, na baía de Nápoles, para nunca mais voltar a Roma. Quando Líbia morreu, em 29 d.C., o único freio sobre as ações de Tibério e do abominável Sejano, seguiu-se a destruição da viúva e da família de Germânico. Por fim, o infame favorito começou a cobiçar o próprio império. Quando Tibério foi informado das maquinações de Sejano, preparou-se para enfrentá-lo com sua arma preferida, a dissimulação. Embora totalmente determinado a destruí-lo, Tibério o cobriu de honras, o nomeou seu parceiro no consulado e, depois de iludir a credulidade de Sejano e a do senado, que o tinha em maior favor do que nunca, ardilosamente preparou sua prisão. Sejano caiu merecidamente e sem compaixão. Mas muitas pessoas inocentes compartilharam de sua destruição em consequência das suspeitas e da crueldade de Tibério, que agora ultrapassavam todos os limites. O restante do reinado desse tirano não passa de uma narrativa repulsiva de servilismo, por um lado, e ferocidade despótica do outro. O fato de que ele próprio chegou a sofrer tanta aflição quanto a que infligia em outros fica evidente na introdução a seguir de uma de suas cartas ao senado: “O que vos escreverei, senadores, ou o que deixarei de escrever, ou ainda por que escrevê-lo, que os deuses e as deusas me assolem mais do que já sinto diariamente, se eu puder dizer”. “Quanta tortura mental”, observa Tácito, fazendo referência a essa passagem, ‘para extrair tal confissão!’” DAP 200.5
“Sêneca conta que Tibério só ficou bêbado uma vez na vida, pois ele permaneceu em uma condição perpétua de embriaguez desde o momento em que começou a beber até o fim da vida”. DAP 200.6
Tirania, hipocrisia, devassidão e embriaguez constante — se tais características e práticas mostram de fato que alguém é vil, então Tibério exibia tal caráter com perfeição repugnante. DAP 201.1
VERSÍCULO 22. As forças inundantes serão arrasadas de diante dele; serão quebrantadas, como também o príncipe da aliança. DAP 201.2
Bispo Newton apresenta a seguinte interpretação para concordar melhor com o original: “E os braços do inundador serão transbordados diante dele, e será quebrado”. As expressões significam revolução e violência. Para o cumprimento, devemos procurar o momento em que os braços de Tibério, o inundador, foram inundados, ou, em outras palavras, a ocasião em que sofreu uma morte violenta. A fim de mostrar como isso se cumpriu, recorremos mais uma vez à Encyclopedia Americana, verbete Tibério: DAP 201.3
“Agindo com hipocrisia até o fim, ele disfarçou sua debilidade crescente o quanto pôde, chegando a fingir participar dos esportes e exercícios dos soldados de sua guarda. Por fim, deixou sua ilha preferida, cena das mais nojentas libertinagens, e parou em uma casa de campo próxima ao promontório de Micenas, onde no dia 16 de março de 37, ele caiu em um estado de letargia, parecendo morto. Enquanto Calígula se preparava com uma numerosa escolta para tomar posse do império, Tibério reviveu repentinamente, causando grande consternação. Nesse momento crítico, Macro, o prefeito pretoriano, o sufocou com travesseiros. Assim morreu o imperador Tibério, aos 78 anos de idade, 23º de seu reinado, universalmente execrado.” DAP 201.4
“O príncipe da aliança” se refere, sem sombra de dúvida, a Jesus Cristo, “o Ungido”, o “príncipe”, que firmaria Sua aliança por uma semana com Seu povo (Daniel 9:25-27). O profeta, depois de nos conduzir até a morte de Tibério, menciona agora brevemente um acontecimento que ocorreria durante esse reinado, tão importante que não poderia ser ignorado, a saber, o quebrantamento do Príncipe da aliança, ou, em outras palavras, a morte de nosso Senhor Jesus Cristo. De acordo com a profecia, isso aconteceu durante o reinado de Tibério. Lucas nos informa (3:1-3) que, no 15º ano do reinado de Tibério César, João Batista iniciou seu ministério. O reinado de Tibério deve começar a ser contado, de acordo com Prideaux, Dr. Hales, Lardner e outros, desde sua elevação ao trono para reinar em conjunto com o padrasto Augusto em agosto de 12 d.C. Logo, seu 15º ano seria de agosto de 26 d.C. até agosto de 27 d.C. Cristo era seis meses mais novo que João, e supõe-se que começou seu ministério seis meses depois, seguindo a lei do sacerdócio, ao começar a obra aos 30 anos de idade. Caso João tenha iniciado na primavera, na última parte do 15º ano de Tibério, o ministério de Cristo teria começado no outono de 27 d.C.; e é bem nesse momento que as autoridades mais confiáveis situam o batismo de Cristo, no exato ano em que terminariam os 483 anos a partir de 457 a.C., os quais se estenderiam até o Ungido, o Príncipe. Foi então quando Cristo saiu proclamando que o tempo havia se cumprido. Desse ponto, avançamos três anos e meio para encontrar a data da crucifixão, pois Cristo participou apenas de quatro Páscoas e foi crucificado na última. Três anos e meio a partir de 27 d.C. nos levam até a primavera de 31 d.C. A morte de Tibério ocorreu apenas seis anos depois, em 37 d.C. (ver os comentários sobre Daniel 9:25-27). DAP 201.5
VERSÍCULO 23. Apesar da aliança com ele, usará de engano; subirá e se tornará forte com pouca gente. DAP 202.1
O “ele” que fez a aliança aqui mencionada deve ser o mesmo poder que foi assunto da profecia desde o versículo 14. E esse é o poder romano, mostrado, sem sombra de dúvida, no cumprimento da profecia em três indivíduos, conforme já notado, que governaram sucessivamente sobre o império romano, a saber, Júlio, Augusto e Tibério César. O primeiro, ao voltar para a fortaleza da própria terra em triunfo, tropeçou, caiu e não foi encontrado (v. 19). O segundo foi um exator, que reinou durante a glória do reino, morreu sem ira nem batalha, mas em paz na própria cama (v. 20). O terceiro foi um destruidor e dos mais vis em caráter. Subiu ao trono em paz, mas tanto seu reinado quanto sua vida terminaram mediante violência. E, durante seu governo, o Príncipe da aliança, Jesus de Nazaré, foi condenado à morte na cruz (v. 21-22). Cristo nunca pode ser quebrantado ou condenado à morte novamente. Por isso, em nenhum outro governo e em nenhuma outra época podemos encontrar o cumprimento de tais eventos. Alguns tentam aplicar esses versículos a Antíoco e classificar como príncipe da aliança algum sumo sacerdote judeu, muito embora eles nunca tenham recebido tal título. Esse é o mesmo tipo de raciocínio que tenta transformar o reinado de Antíoco no cumprimento do chifre pequeno de Daniel 8; e é usado com o mesmo propósito, a saber, quebrar a grande cadeia de evidências que mostra que a doutrina do advento é bíblica e que Cristo Se encontra agora às portas. Mas as evidências não podem ser eliminadas, nem a cadeia ser quebrada. DAP 202.2
Depois de percorrer conosco os eventos seculares do império até o fim das setenta semanas, o profeta, no versículo 23, nos leva de volta para o momento em que os romanos estabeleceram uma conexão direta com o povo de Deus por intermédio da liga judaica, em 161 a.C.. A partir de então, somos conduzidos por uma linha direta de acontecimentos até o triunfo final da igreja e o estabelecimento do reino eterno de Deus. Os judeus, terrivelmente oprimidos por reis sírios, enviaram uma delegação de embaixadores a Roma, a fim de pedir o auxílio dos romanos e se aliar a eles “em uma liga de amizade e confederação” (1 Macabeus 8; Prideaux, vol. 2, p. 166; Josefo, Antiguidades, livro 12, cap. 10, seção 6). Os romanos atenderam ao pedido dos judeus e criaram um decreto para eles nas seguintes palavras: DAP 202.3
“Decreto do senado a respeito de uma liga de assistência e amizade com a nação dos judeus. É proibido a qualquer súdito dos romanos travar guerra contra a nação dos judeus, bem como ajudar aqueles que o fazem, seja por meio do envio de alimento, navios ou dinheiro. Caso qualquer ataque seja feito contra os judeus, os romanos os auxiliarão tanto quanto possível. Em contrapartida, se qualquer ataque for feito contra os romanos, os judeus os ajudarão. E caso os judeus tenham a ideia de acrescentar ou retirar qualquer item desta liga de assistência, isso deve ser feito em comum acordo com os romanos. E qualquer acréscimo efetuado dessa maneira terá força de lei.” DAP 202.4
Josefo relata: DAP 203.1
“Este decreto foi escrito por Eupolemo, filho de João, e Jasom, filho de Eleazar, quando Judas era sumo sacerdote da nação e seu irmão Simão, general do exército. Essa foi a primeira liga que os romanos fizeram com os judeus e foi administrada dessa maneira”. DAP 203.2
Nessa época, os romanos eram um povo pequeno e começaram a agir enganosamente, ou com astúcia. A partir de então, cresceram em uma ascendência constante e rápida até chegar ao auge do poder que conquistaram no futuro. DAP 203.3
VERSÍCULO 24. Virá também caladamente aos lugares mais férteis da província e fará o que nunca fizeram seus pais, nem os pais de seus pais: repartirá entre eles a presa, os despojos e os bens; e maquinará os seus projetos contra as fortalezas, mas por certo tempo. DAP 203.4
Antes da época de Roma, as nações tinham o costume de entrar em províncias valiosas e territórios ricos por meio de guerras e conquistas. Agora Roma estava prestes a fazer o que até então não fora efetuado por seus pais ou antepassados mais distantes, a saber, realizar tais aquisições por meios pacíficos. Foi inaugurada a prática, até então desconhecida, de um rei deixar sua região para os romanos como legado. Roma obteve a posse de grandes províncias dessa maneira. DAP 203.5
E aqueles que entraram para o domínio de Roma dessa maneira desfrutavam grandes vantagens. Eram tratados com bondade e brandura. Era como se a presa e os despojos fossem distribuídos entre eles. Eram protegidos de seus inimigos, descansando em paz e segurança sob a égide do poder romano. DAP 203.6
Bispo Newton sugere que, na última parte do versículo, a ideia seja de maquinar projetos a partir de fortalezas, em vez de contra elas. Era isso que os romanos faziam: maquinavam projetos que provinham da fortaleza de sua cidade, cercada por sete colinas. “Mas por certo tempo” [“por um tempo”, KJV], sem dúvida um tempo profético, 360 anos. A partir de que momento esses anos foram datados? Provavelmente a partir do evento que o versículo seguinte destaca. DAP 203.7
VERSÍCULO 25. Suscitará a sua força e o seu ânimo contra o rei do Sul, à frente de grande exército; o rei do Sul sairá à batalha com grande e mui poderoso exército, mas não prevalecerá, porque maquinarão projetos contra ele. DAP 203.8
Os versículos 23 e 24 nos conduzem do momento da criação da liga entre judeus e romanos, em 161 a.C., até a época em que Roma adquiriu domínio universal. O versículo diante de nós chama atenção para uma campanha vigorosa contra o rei do sul, o Egito, e para uma batalha notável entre exércitos grandes e poderosos. Tais acontecimentos de fato ocorreram na história de Roma durante esse período? Sim. A Guerra foi travada entre Egito e Roma. A batalha em questão consiste na batalha de Áccio. Analisemos brevemente as circunstâncias que conduziram a esse conflito. DAP 203.9
Marco Antônio, César Augusto e Lépido formavam o Triunvirato que fizera o juramento de se vingar da morte de Júlio César. Antônio se tornou cunhado de Augusto ao se casar com Otávia, irmã deste. Antônio foi enviado ao Egito para resolver questões administrativas, mas foi vítima da astúcia e dos encantos de Cleópatra, a rainha dissoluta daquele país. Desenvolveu uma paixão tão forte por ela que acabou defendendo os interesses egípcios. Rejeitou a esposa Otávia, a fim de agradar a Cleópatra, entregou província atrás de província para ela, a fim de gratificar sua cobiça, celebrou um triunfo em Alexandria, em vez de fazê-lo em Roma. Enfim, tanto afrontou o povo romano que Augusto não teve dificuldade em engajar os romanos em uma acalorada empreitada contra esse inimigo do país. Exteriormente, a guerra era contra o Egito e Cleópatra; em realidade, porém, era contra Antônio, que agora estava à frente das questões egípcias. E a verdadeira causa do conflito era, segundo Prideaux, que nenhum dos dois se contentaria apenas com metade do império romano; pois Lépido fora deposto do Triunvirato e agora só restavam os dois, ambos determinados a possuir tudo. Assim, lançaram o dado da guerra para resolver a disputa. DAP 205.1
Marco Antônio reuniu sua frota em Samos. Quinhentos navios de guerra, de tamanho e estrutura extraordinários, que contavam com vários tombadilhos, um por cima do outro, com torres sobre a dianteira e a popa. Juntos, constituíam uma formação militar formidável. Esses navios carregavam 200 mil soldados de infantaria e 12 mil cavaleiros. Os reis da Líbia, Cilícia, Capadócia, Paflagônia, Comagena e Trácia lá estavam pessoalmente. E os de Ponto, da Judeia, Licaônia, Galácia e Média haviam envido suas tropas. O mundo raras vezes contemplou um espetáculo militar tão belo e esplêndido quanto essa frota de navios quando içava as velas e se movia pelo meio do mar. Ultrapassando todos em magnificência, havia a embarcação de Cleópatra, que flutuava como um palácio de ouro embaixo de uma nuvem de velas purpúreas. Suas bandeiras e flâmulas tremulavam no vento. Trombetas e outros instrumentos de guerra faziam o céu ressoar com notas de júbilo e triunfo. Marco Antônio a seguia de perto em um veleiro de magnificência quase igual. Assim a rainha leviana, inebriada pela visão da formação bélica, cheia de vanglória e com visão apenas de curto prazo, à frente de sua infame tropa de eunucos, ameaçava tolamente a capital romana com a aproximação da ruína. DAP 205.2
César Augusto, em contrapartida, exibia menos pompa, mas mais praticidade. Ele tinha apenas metade dos navios de Marco Antônio e somente 80 mil soldados. Mas toda sua tropa era composta por homens selecionados e, à frente de sua frota, só havia marinheiros experientes. Já Antônio, sem encontrar marujos o bastante, fora obrigado a popular seus navios com artesãos de todos os ramos, homens inexperientes e mais propensos a causar problemas do que a promover serviço útil na hora de batalha. Quando passou o tempo necessário para a conclusão desses preparativos, César estabeleceu seu ponto de encontro em Brindisi e Antônio, em Corfu até o ano seguinte. DAP 205.3
Assim que o clima permitiu, os dois exércitos foram colocados em movimento tanto na terra quanto no mar. As frotas por fim adentraram o Golfo Ambraciano em Epiro, e as forças terrestres se posicionaram em ambas praias, à vista uma da outra. Os generais mais experientes de Marco Antônio o aconselharam a não arriscar uma batalha pelo mar com seus marinheiros inexperientes, mas a mandar Cleópatra de volta ao Egito e se apressar até a Trácia ou Macedônia, confiando a questão a suas forças terrestres, formadas por soldados veteranos. Ele, porém, ilustrando o antigo adágio Quem Deus vult perdere, prius dementat (Aquele a quem Deus deseja destruir, primeiro o faz enlouquecer), perdidamente apaixonado por Cleópatra, só parecia ter o desejo de lhe agradar. Ela, por sua vez, confiando apenas nas aparências, considerava sua frota invencível e aconselhou ação imediata. DAP 205.4
A batalha foi travada em 2 de setembro de 31 a.C., junto à foz do Golfo Ambraciano, perto da cidade de Áccio. O mundo era o prêmio pelo qual esses dois bravos guerreiros, Antônio e César, agora disputavam. A batalha, duvidosa havia tanto tempo, foi decidida, por fim, pelas ações que Cleópatra tomou; pois ela, assustada com o estrondo da batalha, fugiu quando não havia perigo e arrastou consigo toda a frota egípcia. Antônio, ao contemplar esse movimento, e cego para tudo, a não ser para a paixão desenfreada que sentia por ela, a seguiu precipitadamente, cedendo a vitória a César. Caso as forças egípcias houvessem sido leais e ele próprio tivesse se mantido fiel a sua hombridade, poderia até ter saído vencedor. DAP 206.1
Sem dúvida, essa batalha marca o início do “tempo” mencionado no versículo 24. E uma vez que, durante esse “tempo”, estratégias — ou projetos — provenientes da fortaleza, ou de Roma, seriam maquinadas, devemos concluir que, ao fim desse período, a supremacia ocidental cessaria, ou uma mudança tão grande ocorreria no império que a cidade não seria mais considerada a sede do governo. Contando a partir de 31 a.C., em tempo profético, 360 anos nos levam a 330 d.C. É notável constatar que, justamente nesse ano, Constantino, o Grande, transferiu a sede do império de Roma para Constantinopla (ver Encyclopedia Americana, verbete Constantinopla). DAP 206.2
VERSÍCULO 26. Os que comerem os seus manjares o destruirão, e o exército dele será arrasado, e muitos cairão traspassados. DAP 206.3
A causa da derrota de Antônio foi a deserção de seus aliados e amigos, aqueles que comiam os seus manjares. Primeiro Cleópatra, conforme já relatado, se retirou de repente da batalha, levando 60 navios do front consigo. Em segundo lugar, o exército de infantaria, cansado da obsessão de Antônio por Cleópatra, correu para César, que o recebeu de braços abertos. Terceiro, quando Antônio chegou à Líbia, descobriu que as forças que havia deixado ali sob a liderança de Escarpo, para vigiar a fronteira, haviam mudado para o lado de César. Em quarto lugar, após ser perseguido por César até o Egito, foi traído por Cleópatra e as forças militares dele se renderam. Diante disso, enfurecido e desesperado, tirou a própria vida. DAP 206.4
VERSÍCULO 27. Também estes dois reis se empenharão em fazer o mal e a uma só mesa falarão mentiras; porém isso não prosperará, porque o fim virá no tempo determinado. DAP 206.5
Antônio e César haviam feito uma aliança no passado. Todavia, sob o disfarce da amizade, ambos aspiravam ao domínio universal e tramavam intrigas para conquistá-lo. As declarações de deferência e amizade um pelo outro não passavam de hipocrisia. Falavam mentiras a uma só mesa. Otávia, esposa de Antônio e irmã de César, havia declarado ao povo de Roma, quando Antônio se divorciou dela, que ela só havia consentido em se casar com ele na esperança de que seria um compromisso de união entre César e Antônio. Mas tal desejo não se concretizou. A ruptura aconteceu e, quando o conflito se travou, César saiu completamente vitorioso. DAP 206.6
VERSÍCULO 28. Então, o homem vil tornará para a sua terra com grande riqueza, e o seu coração será contra a santa aliança; ele fará o que lhe aprouver e tornará para a sua terra. DAP 207.1
Dois retornos de conquistas estrangeiras são trazidos à nossa atenção aqui. O primeiro, após os acontecimentos narrados nos versículos 26 e 27; o segundo, depois que esse poder voltasse o coração contra a santa aliança, fazendo o que lhe aprouvesse. O primeiro se cumpriu com o retorno de César após sua expedição contra o Egito e Marco Antônio. Ele voltou para Roma coberto de honras e riquezas; pois, segundo Prideaux (vol. 2, p. 380), “nessa ocasião, foram trazidas tantas riquezas do Egito a Roma, após a vitória sobre aquele país e durante o retorno de Otaviano [César] e de seu exército de lá, que o valor da moeda caiu pela metade e o preço das provisões e de todas as mercadorias passou a ser o dobro a partir de então”. César celebrou suas vitórias com uma marcha triunfal de três dias — procissão esta que teria sido abrilhantada pela presença da própria Cleópatra, como uma das cativas reais, caso não houvesse ardilosamente causado a própria morte pela mordida de uma serpente letal. DAP 207.2
Depois da conquista do Egito, a grande empreitada seguinte dos romanos foi a expedição contra a Judeia, que ocasionou a captura e destruição de Jerusalém. Sem dúvida, a santa aliança se refere à aliança de Deus com Seu povo, sob formas diferentes e em diferentes eras do mundo, isto é, com todos aqueles que creem Nele. Os judeus rejeitaram a Cristo e, em conformidade com a profecia de que todos aqueles que não dessem ouvidos ao profeta seriam cortados, eles foram destruídos, tirados da própria terra e dispersos por todas as nações debaixo do céu. E embora tanto judeus quanto cristãos tenham sofrido sob as mãos opressoras dos romanos, certamente as conquistas mencionadas nesta passagem foram demonstradas, de maneira especial, na ruína da Judeia. DAP 207.3
Sob a liderança de Vespasiano, os romanos invadiram a Judeia e tomaram as cidades de Galileia, Corazim, Betsaida e Cafarnaum, nas quais Cristo fora rejeitado. Destruíram os habitantes e nada deixaram, além de ruínas e desolação. Tito sitiou Jerusalém. Fez uma trincheira ao redor, conforme o Salvador previra. Seguiu-se uma fome terrível, cuja gravidade é possível que o mundo nunca tenha testemunhado de maneira equivalente em qualquer outra época. Moisés previra, anteriormente, que até uma mulher terna e delicada comeria os próprios filhos nas agruras do cerco com o qual seus inimigos os afligiriam. Durante o cerco de Jerusalém por Tito, ocorreu o cumprimento literal dessa predição. E ele, ao ficar sabendo desse ato desumano, esquecendo-se de que era o responsável por levar os judeus a um ato extremo tão abominável, jurou extirpar para sempre aquela maldita cidade e seu povo. DAP 207.4
Jerusalém caiu no ano 70 d.C. Como honra a si próprio, o comandante romano estava determinado a salvar o templo; mas o Senhor dissera que não deveria restar pedra sobre pedra que não fosse derrubada. Um soldado romano pegou um tição em chamas e, subindo nos ombros de um de seus companheiros, o jogou dentro de uma das janelas da bela estrutura. Logo estava tomada pelo fogo. Os esforços frenéticos dos judeus para extinguir as chamas foram intensificados com a ajuda do próprio Tito, mas tudo em vão. Ao ver que o templo desabaria, Tito correu para dentro, pegou o candelabro de ouro, a mesa dos pães da proposição e o volume da lei, enrolado em tecido de ouro. Posteriormente, o candelabro foi colocado no Templo da Paz de Vespasiano e copiado no arco triunfal de Tito, onde sua imagem mutilada ainda pode ser vista. DAP 207.5
O cerco de Jerusalém durou cinco meses. Durante esse período, um milhão e cem mil judeus pereceram e 97 mil foram levados prisioneiros. A cidade era tão surpreendentemente forte que Tito exclamou, ao ver suas ruínas: “Lutamos com a ajuda de Deus”. Mas foi destruída por completo e os alicerces do templo foram lavrados por Terêncio Rufo. A duração de toda a guerra foi de sete anos. Conta-se que um milhão, quatrocentas e sessenta e duas mil pessoas (1.462.000) perderam a vida, vítima de seus horrores. DAP 208.1
Assim esse poder fez o que lhe aprouve e tornou à sua terra. DAP 208.2
VERSÍCULO 29. No tempo determinado, tornará a avançar contra o Sul; mas não será nesta última vez como foi na primeira. DAP 208.3
O tempo determinado provavelmente é o tempo profético do versículo 24, já mencionado. Conforme já demonstrado, ele se encerrou em 330 d.C., momento em que esse poder retornou e voltou a avançar contra o sul. A profecia havia predito que não seria “como da primeira vez, ou como da segunda vez” (KJV). Em outras palavras, a investida não seria como da primeira vez, quando avançou contra o Egito, ou como da segunda vez, quando avançou contra a Judeia. Aquelas foram expedições que resultaram em conquista e glória. Já esta provocou desmoralização e ruína. A mudança da sede do trono para Constantinopla foi o sinal da queda do império. Roma perdeu então seu prestígio. A parte ocidental ficou exposta a ataques de inimigos estrangeiros. Após a morte de Constantino, o império romano foi dividido em três partes, entre seus três filhos, Constâncio, Constantino II e Constante. Constantino II e Constante entraram em conflito. Constante saiu vitorioso e obteve a supremacia sobre todo o ocidente. Logo foi assassinado por um de seus comandantes, o qual, por sua vez, foi derrotado rapidamente pelo imperador que restara; e, em desespero, pôs fim aos próprios dias em 353 d.C. Os bárbaros do norte deram início a seus ataques e ampliaram suas conquistas até o poder imperial do ocidente terminar em 476 d.C. DAP 208.4
De fato, foi um movimento bastante diferente dos dois anteriores destacados na profecia. E a mudança fatal da sede do império de Roma para Constantinopla conduziu diretamente a isso. DAP 208.5
VERSÍCULO 30. Porque virão contra ele navios de Quitim, que lhe causarão tristeza; voltará, e se indignará contra a santa aliança, e fará o que lhe aprouver; e, tendo voltado, atenderá aos que tiverem desamparado a santa aliança. DAP 208.6
A narrativa profética continua fazendo referência ao poder que tem sido o assunto central desde o versículo 16, a saber, Roma. O que foram os navios de Quitim que viriam contra ele e quando tal movimento foi feito? Que país ou poder é chamado de Quitim? O Dr. A. Clarke, ao comentar Isaías 23:1, faz a seguinte observação: DAP 209.1
“‘Desde a terra de Quitim lhes foi isto revelado’ (ARC). O texto conta que a notícia da destruição de Tiro por Nabucodonosor foi levada até eles de Quitim, as ilhas e costa do Mediterrâneo. Pois os habitantes de Tiro, revela Jerônimo, ao falar sobre o versículo 6, quando viram que não tinham outro meio de escape, fugiram em seus navios e se refugiaram em Cartago, bem como nas ilhas dos mares Jônico e Egeu. Confira também Jocri acerca do mesmo lugar”. DAP 209.2
Kitto também atribui a mesma localidade a Quitim, a saber, a costa e as ilhas do Mediterrâneo. E, pelo testemunho de Jerônimo, a mente é conduzida a uma cidade específica e célebre situada nessa região, a saber, Cartago. DAP 209.3
Já ocorreu alguma batalha naval contra o império romano, na qual Cartago funcionou como sede das operações? Só precisamos nos lembrar do terrível extermínio que os vândalos causaram a Roma, sob a liderança do impetuoso Genserico, para responder na afirmativa sem hesitar. Partindo do porto de Cartago à frente de sua numerosa e bem disciplinada força naval, e desafiando as forças do mar, ele espalhou consternação por todas as províncias marítimas do império. Fica ainda mais evidente que esta é a ação destacada quando consideramos que a profecia nos traz justamente para essa época. No versículo 29, entendemos que se faz menção à transferência do império para Constantinopla. Seguindo a linha do tempo, a próxima revolução notável consiste nas invasões dos bárbaros do norte, dentre as quais a guerra dos vândalos, já mencionada, recebe destaque. Os anos 428-468 d.C. delimitam a carreira de Genserico. DAP 209.4
“Que lhe causarão tristeza; [e] voltará”. Essa pode ser uma referência aos esforços desesperados para demover Genserico da soberania dos mares, primeiro por Majoriano e depois por Leão, ambos resultando em fracassos totais. Roma foi obrigada a se submeter à humilhação de ver suas províncias serem arrasadas e a “cidade eterna” ser saqueada pelo inimigo (ver os comentários sobre Apocalipse 8:8). DAP 209.5
“E se indignará contra a santa aliança”, isto é, as Sagradas Escrituras, o livro da aliança. Uma revolução dessa natureza seria realizada em Roma. Os hérulos, góticos e vândalos, que conquistaram Roma, aderiram à fé ariana, tornando-se inimigos da Igreja Católica. Foi com o propósito especial de exterminar essa heresia que Justiniano decretou que o papa fosse o cabeça da igreja e corretor dos hereges. Logo a Bíblia passou a ser considerada um livro perigoso, que não deveria ser lido pelo povo comum. Em vez disso, todas as dúvidas deveriam ser submetidas ao papa. Assim se amontoaram indignações sobre a Palavra de Deus. E os imperadores de Roma, cuja parte oriental ainda persistia, tinham percepção da situação e se tornaram coniventes com a igreja romana, que havia abandonado a aliança e se transformado na grande apostasia, com o propósito de conter as “heresias”. O homem da iniquidade foi exaltado a seu presunçoso trono por meio da derrota dos góticos arianos, então em posse de Roma, em 538 d.C. DAP 209.6
VERSÍCULO 31. Dele sairão forças que profanarão o santuário, a fortaleza nossa, e tirarão o sacrifício diário, estabelecendo a abominação desoladora. DAP 210.1
O poder do império estava comprometido com o prosseguimento da obra supramencionada. “Profanarão o santuário, a fortaleza nossa”, ou Roma. Caso essas palavras se apliquem aos bárbaros, elas se cumpriram literalmente, pois Roma foi saqueada pelos góticos e vândalos, e o poder imperial do ocidente cessou por meio da conquista da cidade por Odoacro. Ou, caso se refira aos governantes do império que trabalhavam em favor do papado, contra o paganismo e todas as outras religiões oponentes, significa a mudança da sede do império de Roma para Constantinopla, que contribuiu com sua parcela de influência para a queda de Roma. Nesse caso, a passagem seria paralela a Daniel 8:11 e Apocalipse 13:2. DAP 210.2
“E tirarão o sacrifício diário”. Foi demonstrado, nos comentários sobre Daniel 8:13, que sacrifício é uma palavra erroneamente acrescentada; em seu lugar, deveria aparecer desolação. A expressão denota um poder desolador, do qual a abominação desoladora é apenas a contraparte, sucedendo a ele em determinado momento. A desolação “diária” era o paganismo, e a “abominação desoladora” é o papado. Mas é possível questionar como pode ser o papado, uma vez que Cristo fez referência a ela em conexão com a destruição de Jerusalém. A resposta é que Jesus sem dúvida Se referiu ao nono capítulo de Daniel, o qual prediz a destruição de Jerusalém, não a este versículo do capítulo 11, que não faz referência a esse evento. Daniel, no capítulo 9, fala de desolações e abominações no plural. Portanto, mais de uma abominação esmaga a igreja; isto é, no que diz respeito à igreja, tanto o paganismo quanto o papado são abominações. Mas ao diferenciar um do outro, os termos se tornam mais restritos: uma é a desolação “diária”, ao passo que a outra é, preeminentemente, a transgressão ou “abominação” desoladora. DAP 210.3
Como o diário, ou o paganismo, foi tirado? Uma vez que a expressão é usada em conexão com o estabelecimento da abominação desoladora, ou o papado, deve denotar não a mera mudança nominal da religião do império do paganismo para o cristianismo, como no caso da suposta conversão de Constantino, mas, sim, a erradicação do paganismo de todos os elementos do império, a ponto de abrir caminho para a ascensão da abominação papal e a declaração de suas pretensões arrogantes. Tal revolução, definida com tanta clareza, foi realizada, mas só quase 200 anos após a morte de Constantino. DAP 210.4
À medida que nos aproximamos do ano 508 d.C., contemplamos a intensificação de uma grande crise entre o catolicismo e as influências pagãs que ainda existiam no império. Até a conversão de Clóvis, rei da França, em 496 d.C., os franceses e outras nações de Roma ocidental eram pagãos. Depois desse evento, porém, os esforços para converter os idólatras ao romanismo foram coroados de grande sucesso. Conta-se que a conversão de Clóvis foi ocasião para conferir ao monarca francês os títulos de “Cristianíssima Majestade” e “Filho mais Velho da Igreja”. Entre essa época e 508 d.C., por intermédio de alianças, rendições e conquistas, os arborici, as forças romanas no ocidente, a Bretanha francesa, os burgúndios e os visigodos foram sujeitados. DAP 210.5
Quando esses sucessos foram plenamente conquistados, a saber, em 508, o papado triunfou sobre o paganismo. Pois embora este, sem dúvida, tenha retardado o progresso da fé católica, não tinha o poder, mesmo que tivesse a disposição, para suprimir a fé e impedir as usurpações do pontífice romano. Quando os poderes proeminentes da Europa abriram mão de sua ligação com o paganismo, apenas ajudaram a perpetuar suas abominações de outra forma; pois o cristianismo exibido pela igreja católica era, e continua a ser, tão somente um paganismo batizado. DAP 211.1
Na Inglaterra, Artur, o primeiro rei cristão, fundou a adoração cristã sobre as ruínas da pagã. Rapin (livro 2, p. 124), que afirma ter a cronologia exata dos acontecimentos, diz que ele foi eleito monarca da Bretanha inglesa em 508. DAP 211.2
A condição da Santa Sé também era peculiar nessa época. Em 498, Símaco ascendeu ao trono do pontificado após uma conversão recente do paganismo. Ele reinou até 514 d.C. Hu Pin conta que ele conseguiu assumir a posição papal lutando contra seu concorrente até o derramamento de sangue. Recebeu a lisonja de ser sucessor de São Pedro e deu a tônica de sua presunção papal ao excomungar o imperador Anastácio. Os aduladores mais servis do papa começaram a partir de então a defender que ele fora constituído juiz em lugar de Deus e era vice-regente do Altíssimo. DAP 211.3
Essa era a tendência dos acontecimentos no ocidente. Que postura se encontrava na mesma época no oriente? Existia agora um forte partido papal em todas as partes do império. Os adeptos dessa causa em Constantinopla, encorajados pelo sucesso de seus irmãos do ocidente, consideraram seguro dar início a manifestações abertas de hostilidade em defesa de seu mestre em Roma. Em 508, seu zelo partidário culminou em uma mistura bombástica de fanatismo e guerra civil que encheu de fogo e sangue as ruas da capital do oriente. Gibbon, ao falar sobre as comoções em Constantinopla, entre os anos 508-518, conta: DAP 211.4
“As estátuas do imperador foram quebradas e ele próprio se escondeu em um subúrbio até, depois de três dias, implorar pela misericórdia de seus súditos. Sem a coroa e com a postura de um suplicante, Anastácio compareceu ao trono do anfiteatro. Os católicos, à sua frente, recitaram o triságio genuíno e exultaram diante da oferta dele proclamada pela voz de um mensageiro, segundo a qual abdicaria da púrpura real. Ouviram a admoestação de que, como nem todos podiam reinar, deveriam concordar previamente na escolha de um soberano; e aceitaram o sangue de dois ministros impopulares, a quem seu mestre, sem hesitar, condenou aos leões. Tais sedições furiosas, mas passageiras, foram incentivadas pelo sucesso de Vitaliano, o qual, com um exército de hunos e búlgaros, idólatras em sua maior parte, se denominou o defensor da fé católica. Em sua pia rebelião, esvaziou a população da Trácia, sitiou Constantinopla, exterminou 65 mil de seus irmãos cristãos, até conseguir a simpatia e apoio dos bispos, a satisfação do papa, a convocação do Concílio da Calcedônia, bem como um tratado ortodoxo assinado com relutância pelo moribundo Anastácio e cumprido com mais fidelidade pelo tio de Justiniano. Essa foi a primeira das guerras religiosas travadas em nome do Deus da Paz e por seus discípulos (Decline and Fall of the Roman Empire [Declínio e Queda do Império Romano], vol. 4, p. 526). DAP 211.5
É importante destacar que, nesse ano, 508, o paganismo estava em tamanho declínio e o catolicismo havia ganhado tanta força que, pela primeira vez, a igreja católica travou uma guerra bem-sucedida tanto contra a autoridade civil do império oriental quanto com a igreja do oriente, a qual havia, em sua maior parte, aderido à doutrina monofisita. O resultado foi o extermínio de 65 mil hereges. DAP 212.1
Com o excerto a seguir, encerramos o testemunho a esse respeito: DAP 212.2
“Convidamos agora os Gamaliéis modernos a se posicionar no local do santuário do paganismo (desde então considerado “patrimônio de São Pedro”), no ano 508. Olhando para alguns anos antes no passado, encontramos o rude paganismo dos bárbaros do norte assolando o império nominalmente cristão de Roma ocidental, triunfando por toda parte e exibindo triunfos em todos os lugares por meio das mais selvagens formas de crueldade. [...] O império cai e se divide em fragmentos. Um a um, os senhores e governantes desses fragmentos abandonam o paganismo e professam a fé cristã. Em termos de religião, os conquistadores cedem aos conquistados. Mas o paganismo continua a triunfar. Dentre seus apoiadores, há um conquistador implacável e bem-sucedido (Clóvis); mas logo ele também se prostra diante do poder da nova fé e se torna seu defensor. Continua triunfante, mas, como herói e conquistador, chega ao auge no momento que em que nos posicionamos, ou seja, em 508 d.C.” DAP 212.3
“No mesmo ano ou por volta dele, a última subdivisão importante do império é publicamente cristianizada por meio da coroação de seu ‘monarca’ triunfante.” DAP 212.4
“O pontífice do período que agora abordamos era recém-converso do paganismo. A disputa sangrenta que o pôs no poder foi decidida pela interferência de um rei ariano. Ele recebe deferências e saudações como estando a ocupar ‘o lugar de Deus na Terra’. O senado se encontra tanto sob seu domínio que, diante da suspeita de que os interesses da Santa Sé o exigem, eles excomungam o imperador. […] Em 508, a mina explode debaixo do trono do império oriental. O resultado das confusões e contendas ocasionadas é a humilhação de seu legítimo soberano. A pergunta a ser feita agora é: Em que momento o paganismo foi tão suprimido a ponto de abrir caminho para seu substituto e sucessor, a abominação papal? Quando essa abominação foi colocada em posição de iniciar sua carreira de blasfêmia e derramamento de sangue? Haveria outra data para esse ‘estabelecimento’ em lugar do paganismo além de 508? Se a encantadora misteriosa, nessa época, não chegou a colocar todas as vítimas sob seu poder, ela, ao menos, assumiu sua posição e alguns se entregaram ao fascínio. Os outros foram, por fim, conquistados; e ‘reis, povos, nações e línguas’ foram reunidos sob o feitiço que os prepara, mesmo enquanto embriagados “com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus” (Apocalipse 17:6), para que achem “com isso tributar culto a Deus” (João 16:2), imaginando serem os favoritos exclusivos do Céu, ao passo que se tornam presas mais ricas e fáceis para a danação do inferno (Second Advent Manual [Manual do Segundo Advento], p. 79-81). DAP 212.5
Com base nessas evidências, cremos que fica claro que o diário, ou o paganismo, foi tirado em 508 d.C. Essa foi uma preparação para o estabelecimento ou consolidação do papado, evento separado e subsequente. A esse respeito, a narrativa profética nos leva agora a falar. DAP 213.1
“Estabelecendo a abominação desoladora”. Depois de demonstrar de forma bem completa o que constituiu a retirada do diário, ou paganismo, agora perguntamos: quando é que a abominação desoladora, isto é, o papado, foi colocada ou estabelecida? O chifre pequeno que tinha olhos como os de homem não demorou para ver que o caminho se encontrava aberto para seu avanço e sua elevação. A partir de 508, seu progresso rumo à supremacia universal foi sem paralelos. DAP 213.2
Quando Justiniano estava prestes a começar a guerra vândala, em 533 d.C., iniciativa de grande magnitude e dificuldade, desejava assegurar a influência do bispo de Roma, que havia então alcançado uma posição na qual sua opinião tinha grande peso em boa parte da cristandade. Justiniano então assumiu a responsabilidade de decidir de uma vez por todas a disputa que existia, havia muito, entre as sés de Roma e Constantinopla em relação a qual deveria ter precedência, demonstrando predileção por Roma e declarando, nos termos mais claros e inequívocos, que o bispo daquela cidade deveria ser chefe de todo o corpo eclesiástico do império. Uma obra sobre o Apocalipse, do reverendo George Croly, da Inglaterra, publicada em 1827, apresenta um relato detalhado dos acontecimentos que asseguraram a supremacia do papa de Roma. Ele diz que estes foram os termos usados por Justiniano em sua carta: DAP 213.3
Justiniano, pio, afortunado, renomado, triunfante, imperador, cônsul etc., a João, o mais sagrado arcebispo da nossa cidade de Roma, e patriarca.” DAP 213.4
“Rendendo honras à cadeira apostólica e a Sua Santidade, como sempre tem sido e continua a ser nosso desejo, honrando sua bênção como pai, apressamo-nos a trazer ao conhecimento de Sua Santidade todas as questões relativas à condição das igrejas, tendo sido, em todos os momentos, nosso grande desejo preservar a união de sua posição apostólica e a constituição das sagradas igrejas de Deus, o que tem sido alcançado até aqui e há de continuar.” DAP 213.5
“Portanto, não nos demoramos em sujeitar e unir a Sua Santidade todos os sacerdotes de todo o oriente. [...] Não podemos permitir que qualquer coisa que se relacione com o estado da igreja, por mais clara e inquestionável, venha a ocorrer sem o conhecimento de Sua Santidade, que é O CABEÇA DE TODAS AS SANTAS IGREJAS; pois em todas as coisas, conforme já declaramos, estamos ansiosos para aumentar a honra e a autoridade de sua posição apostólica (Croly, p. 114-115). DAP 213.6
Croly continua: DAP 213.7
“A carta do imperador deve ter sido enviada antes de 25 de março de 533; pois em sua epístola dessa data a Epifânio, ele fala que a outra mensagem já fora despachada e repete a decisão de que todas as questões referentes à igreja seriam encaminhadas ao papa, ‘cabeça de todos os bispos e o verdadeiro e eficaz corretor de hereges’’” DAP 213.8
O papa enviou resposta no mesmo mês do ano seguinte, 534, observando que, dentre as virtudes de Justiniano, “uma que brilhava como estrela era sua reverência pela cadeira apostólica, à qual havia sujeitado e unido todas as igrejas, sendo esta a verdadeira cabeça de todas”. DAP 214.1
As “Novellae”, ou seja, as novas constituições do código de Justiniano, deram prova indiscutível da autenticidade do título. O preâmbulo da nona declara que “uma vez que a antiga Roma foi a fundadora das leis, não se deve questionar que nela se encontra a supremacia do pontificado”. A de número 131, sobre os títulos e privilégios eclesiásticos, capítulo 2, declara: DAP 214.2
“Decretamos, portanto, que o santíssimo papa da antiga Roma é o primeiro dentre todo o sacerdócio, e que o altamente abençoado arcebispo de Constantinopla, a nova Roma, deve ocupar o segundo lugar após a sagrada cadeira apostólica da antiga Roma”. DAP 214.3
Próximo ao fim do sexto século, João de Constantinopla negou a supremacia romana e assumiu para si o título de bispo universal. Gregório, o Grande, indignado pela usurpação, denunciou João e declarou, com uma veracidade inconsciente, que aquele que assumisse o título de bispo universal era o anticristo. Focas, em 606, anulou a reivindicação do bispo de Constantinopla e defendeu a do bispo de Roma. Mas Focas não foi o fundador da supremacia papal. Croly conta: DAP 214.4
“Não há dúvida de que Focas anulou a pretensão do bispo de Constantinopla. Contudo, as maiores autoridades em direito civil romano e os mais renomados cronistas de Roma repudiam a ideia de que Focas foi o fundador da supremacia de Roma. Eles se referem a Justiniano como a única fonte legítima e datam corretamente o título a partir do memorável ano de 533.” DAP 214.5
Novamente afirma: DAP 214.6
“Consultando Barônio, a autoridade estabelecida entre os cronistas católicos romanos, encontrei formalmente apresentados todos os detalhes da concessão de supremacia ao papa da parte de Justiniano. Todos os procedimentos ocorreram da forma mais autêntica e regular, correspondendo à importância da transferência” (Apocalypse, p. 8). DAP 214.7
Tais foram as circunstâncias que acompanharam o decreto de Justiniano. Mas as provisões do decreto não puderam ser colocadas em prática de imediato, pois Roma e a Itália estavam nas mãos dos ostrogodos, de fé ariana, os quais se opunham fortemente à religião de Justiniano e do papa. Logo, era evidente que os ostrogodos precisavam ser expulsos de Roma para que o papa pudesse exercer o poder com o qual fora investido. A fim de cumprir tal objetivo, a guerra italiana começou em 534. A administração da campanha foi confiada a Belisário. Enquanto ele se aproximava de Roma, várias cidades abandonaram Vitige, seu soberano gótico e herege, e se uniram ao exército do imperador católico. Os góticos, decidindo adiar as ofensivas até a primavera, deixaram Belisário entrar em Roma sem resistência. “Os representantes do papa e do clero, do senado e do povo convidaram o comandante de Justiniano a aceitar a voluntária lealdade deles”. DAP 214.8
Belisário entrou em Roma no dia 10 de dezembro de 536. Mas esse não foi o fim do conflito; pois os góticos, reunindo forças, resolveram disputar a posse da cidade por meio de um cerco regular. Começaram em março de 537. Belisário temia que o povo se desesperasse e cometesse algum ato de traição. Vários senadores e o papa Silvério, diante de provas ou suspeitas de traição, foram mandados para o exílio. O imperador ordenou ao clero que escolhesse um novo bispo. Depois de invocar solenemente o Espírito Santo, conta Gibbon, elegeram Vigílio, o qual comprou a honra por meio de um suborno de 90 kg de ouro. DAP 214.9
Toda a nação dos ostrogodos havia se reunido para o cerco de Roma. Mas seus esforços não foram acompanhados de sucesso. Suas hostes se envolviam em combates frequentes e sangrentos sob os muros da cidade. Durante um ano e nove dias, o tempo que o cerco durou, quase toda a nação foi consumida. Em março de 538, ameaçados de perigos vindos de outras partes, levantaram o cerco, queimaram suas tendas e se retiraram em tumulto e confusão da cidade, com um número quase insuficiente para preservar sua existência como nação ou identidade como povo. DAP 215.1
Assim o chifre gótico, o último dos três, foi arrancado perante o chifre pequeno de Daniel 7. Agora nada mais estava no caminho do papa para impedir que exercesse o poder que lhe fora conferido por Justiniano cinco anos antes. Agora os santos, os tempos e as leis estavam em suas mãos, não só em propósito, mas de fato também. Logo, este deve ser considerado o ano no qual a abominação foi estabelecida e o ponto de início para seus 1.260 anos de supremacia. DAP 215.2
VERSÍCULO 32. Aos violadores da aliança, ele, com lisonjas, perverterá, mas o povo que conhece ao seu Deus se tornará forte e ativo. DAP 215.3
Aqueles que abandonam a aliança, as Sagradas Escrituras, e têm mais consideração pelos decretos de papas e decisões de concílios do que pela Palavra de Deus serão pervertidos pelas lisonjas do papa; isto é, serão levados a agir com zelo partidário em benefício dele ao receberem riquezas, posições e honras. DAP 215.4
Ao mesmo tempo, existirá um povo que conhece seu Deus — um povo forte e ativo. São aqueles que mantiveram viva a religião pura da Terra durante a era negra da tirania papal, realizando feitos maravilhosos de sacrifício pessoal e heroísmo religioso em nome de sua fé. Destacam-se dentre eles os valdenses, albigenses, huguenotes, etc. DAP 215.5
VERSÍCULO 33. Os sábios entre o povo ensinarão a muitos; todavia, cairão pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pelo roubo, por algum tempo. DAP 215.6
O longo período de perseguição papal contra os que lutaram para preservar a verdade e instruir as outras pessoas nos caminhos da justiça recebe destaque nesta passagem. O número de dias que permaneceriam nessa situação é mencionado em Daniel 7:25; 12:7; Apocalipse 12:6, 14; 13:5. O período é chamado de “um tempo, dois tempos e metade de um tempo”; “um tempo, tempos e meio tempo” (NVI), “mil duzentos e sessenta dias” e “quarenta e dois meses”. São os 1.260 anos de supremacia papal. DAP 215.7
VERSÍCULO 34. Ao caírem eles, serão ajudados com pequeno socorro; mas muitos se ajuntarão a eles com lisonjas. DAP 216.1
Em Apocalipse 12, onde se chama atenção para essa mesma perseguição papal, lemos que a Terra socorreu a mulher abrindo a boca e engolindo o rio que o dragão tinha lançado atrás dela. A grande Reforma de Lutero e seus coobreiros forneceu o socorro predito. Os estados germânicos aderiram à causa protestante, protegeram os reformadores e contiveram a obra de perseguição tão furiosamente levada adiante pela igreja papal. Mas quando assim fossem ajudados e a causa começasse a ganhar popularidade, muitos se ajuntariam a eles com lisonjas, ou seja, adeririam à causa por motivos indignos, não seriam sinceros, teriam o coração vazio e profeririam palavras suaves e amistosas movidos por uma política de interesse próprio. DAP 216.2
VERSÍCULO 35. Alguns dos sábios cairão para serem provados, purificados e embranquecidos, até ao tempo do fim, porque se dará ainda no tempo determinado. DAP 216.3
Embora refreado, o espírito de perseguição não foi destruído. Irrompia sempre que havia oportunidade. Esse foi o caso sobretudo na Inglaterra. A condição religiosa desse reino oscilava, às vezes protestante, às vezes de jurisdição papal, de acordo com a religião do governante. A sangrenta rainha Maria foi inimiga mortal da causa protestante e multidões foram vítimas de suas perseguições implacáveis. Tal situação duraria mais ou menos até o tempo do fim. A conclusão natural seria que, quando o tempo do fim chegasse, o poder que a igreja de Roma possuíra para punir os hereges e que causara tanta perseguição e, por um tempo, fora contido, agora seria completamente retirado; e a conclusão igualmente clara é que essa retirada da supremacia papal marcaria o início do período denominado tempo do fim. Caso essa aplicação esteja correta, o tempo do fim começou em 1798; pois nesse ano, conforme já destacado, o papado foi subjugado pelos franceses e nunca mais conseguiu exercer o poder que possuíra antes. Fica claro que a referência é à opressão da igreja pelo papado por ser a única, com a possível exceção de Apocalipse 2:10, relacionada a um “tempo determinado”, ou um período profético. DAP 216.4
VERSÍCULO 36. Este rei fará segundo a sua vontade, e se levantará, e se engrandecerá sobre todo deus; contra o Deus dos deuses falará coisas incríveis e será próspero, até que se cumpra a indignação; porque aquilo que está determinado será feito. DAP 216.5
O rei aqui apresentado não pode ser o mesmo poder mencionado por último, a saber, o papado, pois as especificações não se sustentam caso sejam aplicadas a esse poder. DAP 216.6
Tome como exemplo uma declaração do versículo seguinte: “Não terá respeito ao Deus de seus pais” (ACF, KJV). Isso nunca foi verdade em relação ao papado. Deus e Cristo, embora frequentemente colocados em posições falsas, nunca foram abertamente deixados de lado e rejeitados por esse sistema religioso. A única dificuldade em aplicá-lo a um novo poder se encontra no pronome demonstrativo este, ou, conforme a NVI e a KJV, no artigo o. Afirma-se que a expressão “o rei”, “este rei” o identificaria como o último a ser mencionado. Caso se pudesse traduzir adequadamente por um rei, não haveria dificuldade. Afirma-se também que alguns dos melhores críticos da Bíblia defendem essa versão. Mede, Wintle, Boothroyd e outros traduzem a passagem por “um certo rei fará segundo a sua vontade”, introduzindo claramente, assim, um novo poder no palco de ação. DAP 216.7
Três características peculiares devem aparecer no poder que cumpre esta profecia: 1) deve assumir o caráter aqui apresentado perto do início do tempo do fim, ao qual o versículo anterior nos traz; 2) deve ser cheio de vontade própria; 3) deve ser um poder ateu; ou talvez as duas últimas especificações se unam ao dizer que sua vontade própria se manifestaria na direção do ateísmo. Uma revolução que corresponde exatamente a essa descrição ocorreu na França bem na época indicada pela profecia. Voltaire havia jogado as sementes que deram seu legítimo e terrível fruto. Esse arrogante infiel, em seu pomposo, mas impotente orgulho próprio, dissera: “Estou cansado de ouvir as pessoas repetirem que doze homens fundaram a religião cristã. Provarei que basta um homem para derrubá-la”. Associando-se a indivíduos como Rousseau, D’Alembert, Diderot e outros, ele se empenhou nessa obra. Eles semearam vento e colheram tempestade. Seus esforços culminaram na revolução de 1793, quando a Bíblia foi descartada e a existência da Divindade negada, como a voz da nação. DAP 217.1
O historiador assim descreve essa grande mudança religiosa: DAP 217.2
“Não era suficiente, disseram eles, que uma nação regenerada destronasse os reis terrenos, a menos que estendesse os braços para desafiar aqueles poderes que a superstição havia representado como reinando sobre o espaço ilimitado” (Scott, Napoleon [Napoleão], vol. 1, p. 172). DAP 217.3
Ele disse ainda: DAP 217.4
“O principal bispo de Paris ganhou destaque para desempenhar a parte principal na farsa mais descarada e escandalosa já encenada diante de uma representação nacional. [...] Ele foi levado à frente em grande procissão, a fim de declarar para a convenção que a religião que havia ensinado por tantos anos era, em todos os aspectos, mera INVENÇÃO DOS SACERDOTES, sem nenhuma base na história, nem na verdade sagrada. Negou, em termos solenes e explícitos, a EXISTÊNCIA DA DIVINDADE, a cuja adoração fora consagrado, e se consagrou no futuro a honrar a Liberdade, a Igualdade, a Virtude e a Moralidade. Então colocou sobre a mesa seus adornos episcopais e ganhou um abraço fraterno do presidente da convenção. Vários padres apóstatas seguiram o exemplo desse prelado. [...] O mundo, pela PRIMEIRA vez, ouviu uma assembleia de homens, nascidos e educados na civilização, presumindo ter o direito de governar uma das mais sofisticadas nações europeias, erguer sua voz unida para negar a mais solene verdade que a alma humana pode receber e renunciar com UNANIMIDADE A CRENÇA EM DEUS E A ADORAÇÃO A ELE” (Idem, vol. 1, p. 173). DAP 217.5
Alguns anos atrás, um escritor disse, na revista Blackwood: DAP 218.1
A França é a única nação do mundo cujos registros autênticos relatam ter levantado as mãos, como nação, em rebelião aberta contra o Autor do Universo. Não faltam blasfemadores e infiéis, tanto no passado quanto no presente, na Inglaterra, Alemanha, Espanha e outros lugares; mas a França se diferencia na história por ser o único Estado que, por decreto de sua assembleia legislativa, pronunciou a inexistência de Deus; e toda a população da capital, bem como a vasta maioria de outros lugares, tanto mulheres quanto homens, dançou e cantou de alegria em aceitação ao pronunciamento.” DAP 218.2
Mas ainda restam outras especificações mais impressionantes que se cumpriram nesse poder. DAP 218.3
VERSÍCULO 37. Não terá respeito aos deuses de seus pais, nem ao desejo de mulheres, nem a qualquer deus, porque sobre tudo se engrandecerá. DAP 218.4
A palavra hebraica para mulher também é traduzida por esposa; e bispo Newton observa que essa passagem seria traduzida com maior propriedade por “desejo de esposas”. Isso parece indicar que, na mesma época em que o governo declarasse que Deus não existia, pisotearia a lei dada por Deus para regular a instituição do matrimônio. Descobrimos que o historiador, talvez de modo inconsciente - e, se for esse o caso, ainda mais significativo — citou juntos o ateísmo e a licenciosidade desse governo na mesma ordem em que são apresentados na profecia. Ele conta: DAP 218.5
“Intimamente ligada às leis sobre religião se encontra aquela que reduziu a união do casamento — o elo mais sagrado que os seres humanos podem formar, cuja permanência conduz com toda força à consolidação da sociedade — à condição de mero contrato civil de caráter passageiro, por meio do qual duas pessoas poderiam se unir e desunir conforme o bel-prazer, quando o gosto mudasse ou o apetite estivesse satisfeito. Se demônios houvessem se envolvido na obra de descobrir a maneira mais eficaz de destruir tudo aquilo que é venerável, gracioso ou permanente na vida doméstica, obtendo, ao mesmo tempo, a certeza de que o prejuízo que estavam prestes a causar seria perpetuado de uma geração para a outra, não poderiam ter inventado um plano mais eficiente do que a degradação do casamento a um estado de mera coabitação ocasional ou concubinato legal. Sophie Arnoult, atriz famosa por seus ditos espirituosos, descreveu o casamento republicano como o sacramento do adultério. Tais regras antirreligiosas e antissociais não atenderam ao propósito dos fanáticos, que, em seu frenesi irrefletido, incentivaram sua criação (Scott, Napoleon, vol. 1, p. 173). DAP 218.6
“Nem a qualquer deus”. Além do testemunho já apresentado para demonstrar o ateísmo completo da nação nessa época, devem ser registradas as terríveis palavras a seguir, envoltas em loucura e presunção: DAP 218.7
“O temor do Senhor, longe de ser o princípio da sabedoria, consiste no princípio da insensatez. A modéstia não passa de uma invenção da voluptuosidade refinada. O Rei Supremo, o Deus dos judeus e dos cristãos, não passa de um fantasma. Jesus Cristo é um impostor.” DAP 218.8
Outro autor diz: DAP 220.1
“Em 26 de agosto de 1792, a Convenção Nacional realizou uma profissão aberta de ateísmo, e sociedades e clubes ateus semelhantes se reuniam destemidamente em toda parte da nação francesa. Massacres e o reino do terror se tornaram tão horrendos quanto se possa imaginar” (Smith, Key to Revelation [Chave para o Apocalipse], p. 323). DAP 220.2
“Hebert, Chaumette e seus companheiros apareceram na corte e declararam que Deus não existe” (Alison, vol. 1, p. 150). DAP 220.3
A essa altura, toda adoração religiosa foi proibida, com exceção do culto à liberdade e ao país. As imagens de ouro e prata das igrejas foram retiradas e profanadas. As igrejas foram fechadas. Os sinos foram quebrados e usados para construção de canhões. A Bíblia foi publicamente queimada. Os utensílios usados nos sacramentos foram desfilados pelas ruas em cima de jumentos, em sinal de desprezo. Foi instituída uma semana de dez dias, em vez de sete. Cartazes foram afixados em túmulos, declarando, com letras garrafais, que a morte era um sono eterno. Mas a maior de todas as blasfêmias, se é que tais orgias do inferno admitem hierarquia, seria encenada pelo comediante Monvel, que, como sacerdote do Iluminismo, afirmou: DAP 220.4
“Deus, se Tu existes, vinga Teu nome difamado. Convoco-Te a desafiar-nos! Permaneces em silêncio. Não ousas enviar Teus trovões! Quem, depois disso, crerá em Tua existência? Toda a instituição eclesiástica foi destruída” (Scott, Napoleon, vol. 1, p. 173). DAP 220.5
É isso que o ser humano demonstra ser quando entregue a si mesmo. Assim é a infidelidade quando as amarras da lei são retiradas e ela recebe o poder nas mãos! Há dúvidas de que essas são as cenas que o Onisciente previu e registrou nas páginas sagradas, ao apontar para o surgimento de um reino que se exaltaria sobre todos os deuses e não teria respeito por nenhum deles? DAP 220.6
VERSÍCULO 38. Mas, em lugar dos deuses, honrará o deus das fortalezas; a um deus que seus pais não conheceram, honrará com ouro, com prata, com pedras preciosas e coisas agradáveis. DAP 220.7
Deparamos com uma aparente contradição neste versículo. Como uma nação pode não ter respeito a nenhum deus, mas, ainda assim, honrar o deus das fortalezas? Não seria possível ocupar ambas as posições ao mesmo tempo; mas poderia por um tempo não ter respeito a nenhum deus e, depois disso, introduzir outra forma de adoração e honrar o deus das fortalezas. Tal mudança ocorreu na França durante essa época? Sim. A tentativa de transformar a França em uma nação sem deus provocou tamanha anarquia que os governantes temeram que o poder saísse por completo de suas mãos. Por isso, perceberam que era uma necessidade política introduzir alguma forma de adoração. Mas eles não tinham a intenção de introduzir qualquer movimento que aumentasse a devoção, ou desenvolver verdadeiro caráter espiritual no povo, mas apenas que os mantivesse no poder e lhes desse controle sobre as forças nacionais. Alguns trechos da história demonstrarão como isso aconteceu. Os primeiros objetos de adoração foram a liberdade e o país. “Liberdade, igualdade, virtude e moralidade” — o contrário de tudo aquilo que eles possuíam de fato ou exibiam na prática foram as palavras que promoveram para descrever a divindade da nação. Em 1793, foi introduzida a adoração à Deusa da Razão, assim descrita pelo historiador: DAP 220.8
“Uma das cerimônias dessa época insana não encontra rival, tamanho foi o absurdo aliado à impiedade. As portas da convenção foram abertas para um bando de músicos que antecederam a entrada dos membros do corpo municipal em procissão solene, cantando um hino em louvor à liberdade e carregando, como objeto de sua adoração futura, uma mulher envolta por um véu, a quem denominaram Deusa da Razão. Sendo trazida para dentro da corte, seu véu foi retirado com grande cerimônia e ela foi colocada à mão direita do presidente, onde foi reconhecida por todos como uma das dançarinas da ópera, com cujos encantos a maioria dos presentes já estava familiarizada por causa de suas performances no palco. Tal aparição intensificou ainda mais a sensação do momento. A essa pessoa, a mais adequada representante da razão a quem adoravam, a Convenção Nacional da França rendeu homenagem pública. Essa palhaçada ímpia e ridícula causou certo impacto. E a posse da Deusa da Razão foi repetida e imitada em toda a nação, nos lugares onde os habitantes desejavam mostrar que estavam à altura da Revolução (Scott, Life of Napoleon [Vida de Napoleão]). DAP 221.1
Ao introduzir a adoração da Razão, em 1793, Chaumette declarou: DAP 221.2
“’O fanatismo legislativo perdeu seu domínio; deu lugar à razão. Mantivemos seus templos; eles estão regenerados. Hoje, uma imensa multidão se reúne sob seus tetos góticos, os quais, pela primeira vez, ecoarão a voz da verdade. Ali os franceses celebrarão sua verdadeira adoração — à Liberdade e à Razão. Ali formaremos novos votos pela prosperidade dos exércitos da república. Ali abandonaremos a adoração de ídolos inanimados, substituindo-os pela Razão — essa imagem animada, obra-prima da criação.’” DAP 221.3
“Uma mulher de véu, trajada de tecido azul, foi levada até a convenção. E Chaumette, tomando-a pela mão, disse: ‘Mortais, deixem de tremer diante dos trovões impotentes de um Deus a quem seus temores criaram. Daqui em diante, não reconheçam nenhuma divindade além da Razão. Ofereço-lhes esta mais nobre e pura imagem. Se precisam ter ídolos, sacrifiquem apenas a este. […] Prostrem-se perante a augusta Defensora da Liberdade, Símbolo da Razão”. DAP 221.4
Nesse mesmo instante, a deusa apareceu, personificada por uma celebrada beleza, Madame Millard, da ópera, conhecida de mais de uma maneira pela maior parte da convenção. A deusa, após ser abraçada pelo presidente, foi colocada sobre um carro magnífico e conduzida, em meio a uma imensa multidão, até a catedral de Notre Dame, para assumir o lugar da Divindade. Então foi elevada a um grande altar e recebeu a adoração de todos os presentes. DAP 221.5
“No dia 11 de novembro, a sociedade popular do museu entrou na prefeitura exclamando: ‘Vive la Raison!’ e carregando no alto de uma estaca os resquícios queimados de vários livros, dentre eles breviários, o Antigo e o Novo Testamentos, que, segundo o presidente, ‘expiaram em uma grande fogueira todas as loucuras que fizeram a raça humana cometer.’’ DAP 221.6
“Os relacionamentos mais sagrados da vida foram, na mesma época, colocados em uma nova posição, adequada às ideias extravagantes da época. O casamento foi classificado como um contrato civil, vigente somente enquanto durasse a vontade das partes contratantes. Mademoiselle Arnoult, celebrada comediante, expressou o sentimento público quando chamou o casamento de “o sacramento do adultério” (idem). DAP 223.1
De fato, era um “deus estranho” (v. 39), a quem os pais daquela geração “não conheceram”. Nenhuma divindade do tipo fora elevada antes como objeto de adoração. E pode muito bem ser denominada “o deus das fortalezas”; pois o objetivo do movimento era fazer o povo renovar a lealdade e repetir seus votos de prosperidade para os exércitos da França. Leia mais uma vez algumas linhas dos excertos já mencionados: DAP 223.2
“Mantivemos seus templos; eles estão regenerados. Hoje, uma imensa multidão se reúne sob seus tetos góticos, os quais, pela primeira vez, ecoarão a voz da verdade. Ali os franceses celebrarão sua verdadeira adoração — à Liberdade e à Razão. Ali formaremos novos votos pela prosperidade dos exércitos da república”.9 DAP 223.3
VERSÍCULO 39. Com o auxílio de um deus estranho, agirá contra as poderosas fortalezas, e aos que o reconhecerem, multiplicar-lhes-á a honra, e fa-los-á reinar sobre muitos, e lhes repartirá a terra por prêmio. DAP 223.4
O sistema de paganismo que fora introduzido na França, conforme exemplificado na adoração do ídolo representado pela Deusa da Razão e regulamentado por meio de um ritual pagão representado pela Assembleia Nacional, para ser usado pelo povo francês, continuou em vigor até a nomeação de Napoleão como cônsul provisório da França em 1799. Os adeptos dessa estranha religião ocuparam os lugares fortificados, as fortalezas da nação, conforme este versículo exprime. DAP 223.5
Mas o que serve melhor para identificar a aplicação desta profecia à França, talvez com maior clareza do que qualquer outro detalhe, é a declaração feita na última frase do versículo, a saber, que repartiriam “a terra por prêmio”. Antes da Revolução, na França as propriedades em terra pertenciam, em grandes extensões, a algumas pessoas. A lei exigia que tais propriedades permanecessem sem divisão, para que nenhum herdeiro ou credor as repartisse. Mas a revolução não segue leis. E, na anarquia que agora reinava, conforme nota também o capítulo 11 de Apocalipse, os títulos de nobreza foram abolidos e suas terras repartidas em pequenas porções para benefício do erário. O governo necessitava de recursos. Por isso, as imensas propriedades foram confiscadas e vendidas em leilões a compradores propícios. O historiador registra assim essa transação singular: DAP 223.6
“O confisco de dois terços das propriedades rurais do reino, que surgiu por causa dos decretos da convenção contra os emigrantes, clérigos e pessoas condenadas nos Tribunais Revolucionários, [...] colocou recursos equivalentes a mais de 700 milhões de libras esterlinas à disposição do governo” (Alison, vol. 4, p. 151). DAP 224.1
Quando ocorreu tal evento e em qual país de modo a cumprir a profecia de maneira mais completa do que essa? Quando a nação começou a cair em si, uma religião mais racional foi exigida, e aboliram o ritual pagão. O historiador relata esse acontecimento da seguinte maneira: DAP 224.2
“Uma terceira medida ainda mais ousada foi o descarte do ritual pagão e a reabertura das igrejas para a adoração cristã. E o crédito por tudo isso se deve inteiramente a Napoleão, que precisou enfrentar os preconceitos filosóficos de quase todos os seus colegas. Ao conversar com eles, não fez nenhuma tentativa de se representar como adepto do cristianismo, mas enfatizou tão somente a necessidade de proporcionar ao povo um meio regular de adoração para a manutenção de um estado de tranquilidade. Os padres que escolheram fazer o juramento de fidelidade ao governo foram readmitidos em suas funções. E essa sábia medida foi acompanhada da adesão de nada menos do que 20 mil desses ministros religiosos, que vinham definhando até então nas prisões da França (Lockhart, Life of Napoleon [Vida de Napoleão], vol. 1, p. 154). DAP 224.3
Assim terminou o Reino do Terror e a Revolução Infiel. De suas ruínas se ergueu Bonaparte, guiando o tumulto para a própria elevação, colocando-se à frente do governo francês e espalhando terror ao coração das nações. DAP 224.4
VERSÍCULO 40. No tempo do fim, o rei do Sul lutará com ele, e o rei do Norte arremeterá contra ele com carros, cavaleiros e com muitos navios, e entrará nas suas terras, e as inundará, e passará. DAP 224.5
Após um longo intervalo, o rei do sul e o rei do norte aparecem mais uma vez no palco de ação. Não há nada que indique que esses poderes devem ser encontrados em localidades diferentes daquelas que constituíram respectivamente, logo após a morte de Alexandre, as divisões meridional e setentrional do império. O rei do sul era, naquela época, o Egito; e o rei do norte, a Síria, incluindo a Trácia e a Ásia Menor. O Egito continua a ser, por comum acordo, o rei do sul, ao passo que o território que a princípio constituía o rei do norte foi incluído, ao longo dos últimos 400 anos, aos domínios do sultão da Turquia. Logo, é para o Egito e para a Turquia que devemos olhar procurando o cumprimento do versículo à nossa frente, em sua relação com o poder que acaba de ser analisado. DAP 224.6
Essa aplicação da profecia chama atenção para um conflito que teria surgido entre o Egito e a França, e entre a Turquia e a França, em 1798, ano que, conforme vimos, marcou o início do tempo do fim. Caso a história comprove que tal guerra triangular de fato eclodiu nesse ano, será uma prova conclusiva de que a aplicação está correta. DAP 224.7
Perguntamos, então: é verdade que, no tempo do fim, o Egito de fato “lutou”, ou ofereceu uma resistência comparativamente frágil, ao passo que a Turquia “arremeteu contra ele” como um “vendaval” (KJV), ou seja, contra o governo da França? Já fornecemos algumas evidências de que o tempo do fim começou em 1798; e nenhum conhecedor da história precisa ser informado de que, justamente nesse ano, começou um estado de hostilidade aberta entre a França e o Egito. DAP 225.1
Cada historiador tem a própria opinião sobre até que ponto esse conflito deve sua origem aos sonhos de glória delirantemente acariciados pelo cérebro ambicioso de Napoleão Bonaparte; mas os franceses, ou, pelo menos Bonaparte, tramaram transformar o Egito no agressor. Assim, quando, em sua invasão ao país, já havia garantido sua primeira base na Alexandria, declarou que não “fora destruir o país, nem o arrancar do Grande Sultão, mas meramente livrá-lo do domínio dos mamelucos e vingar os ultrajes que eles haviam cometido contra a França” (Thiers, French Revolution, vol. 4, p. 268). DAP 225.2
O historiador diz ainda: “Além disso, ele [Bonaparte] tinha fortes motivos para insurgir-se contra eles [os mamelucos]; pois nunca deixaram de tratar mal os franceses” (idem, p. 273). DAP 225.3
No início de 1798, a França se encontrava entregue a projetos imensos contra os ingleses. O Diretório desejava que Bonaparte realizasse de imediato um ataque à Inglaterra. Ele achava, porém, que nenhuma operação direta dessa natureza poderia ser empreendida judiciosamente antes do outono; ao mesmo tempo, não estava disposto a arriscar sua reputação ascendente passando o verão em ociosidade. “No entanto”, conta o historiador, “ele vislumbrou uma terra distante, onde ganharia uma glória que lhe daria novo encanto aos olhos de seus compatriotas, pelo romance e mistério que a circundavam. O Egito, a terra dos Faraós e Ptolomeus, seria um campo nobre para novos triunfos” (White, History of France [História da França], p. 469). DAP 225.4
Motivado por visões mais amplas de glória que se abriam diante dos seus olhos naquelas terras históricas orientais, abrangendo não só o Egito, mas também a Síria, Pérsia, Índia e até o próprio Ganges, Bonaparte não encontrou dificuldades em convencer o Diretório de que o Egito era o ponto vulnerável por meio do qual atingiriam a Inglaterra, ao interceptarem sua rota oriental de comércio. Logo, usando o pretexto que acabamos de mencionar, a campanha egípcia foi iniciada. DAP 225.5
A queda do papado, que marcou o término dos 1.260 anos e, segundo o versículo 35, apontou para o início do tempo do fim, ocorreu em 10 de fevereiro de 1798, quando Roma caiu nas mãos de Berthier, o general dos franceses. Em 5 de março seguinte, Bonaparte recebeu o decreto do Diretório acerca da expedição contra o Egito. Ele saiu de Paris em 3 de maio e partiu do porto de Toulon no dia 19, com grande armamento naval, formado por 500 embarcações, que carregavam 40 mil soldados e 10 mil marinheiros. Em 5 de julho, Alexandria foi tomada e imediatamente fortificada. No dia 23, a decisiva batalha das pirâmides foi travada, na qual os mamelucos defenderam a terra com coragem e desespero, mas não eram páreo para as legiões disciplinadas dos franceses. Murad Bey perdeu todos os seus canhões, 400 camelos e 3 mil homens. Em comparação, a perda dos franceses foi pequena. No dia 24, Napoleão entrou no Cairo, a capital do Egito, e só aguardou a cheia do Nilo baixar para perseguir Murad Bey no Alto Egito, para onde este havia se retirado com o restante de seus cavaleiros, e assim conquistar o país inteiro. Dessa maneira, o rei do sul foi capaz de oferecer tão somente uma frágil resistência. DAP 225.6
A essa altura, porém, a situação de Napoleão começou a ficar precária. A frota francesa, que era o único canal de comunicação com a França, foi destruída pelos ingleses sob a liderança de Nelson em Aboukir; e no dia 2 de setembro do mesmo ano, 1798, o sultão da Turquia, dominado por sentimentos de suspeita da França, ardilosamente despertados pelos embaixadores ingleses em Constantinopla, e exasperado pelo fato de o Egito, por tanto tempo semidependente do império otomano, estar se transformando em uma província francesa, declarou guerra contra a França. Dessa maneira, o rei do norte (Turquia) arremeteu contra a França no mesmo ano em que o rei do sul (Egito) lutou contra ele, ambos “no tempo do fim” — outra prova conclusiva de que 1798 foi o ano em que inicia esse período. Tudo isso é uma demonstração de que a aplicação dessa profecia está correta, pois tantos eventos correspondendo com tamanha precisão às especificações da profecia não ocorreriam todos juntos sem ser o cumprimento da profecia. DAP 226.1
A vinda do rei do norte, ou a Turquia, foi mais forte em comparação com a luta do Egito? Napoleão havia esmagado os exércitos do Egito. Ele tentou fazer o mesmo com os exércitos do sultão, que estavam ameaçando um ataque vindo da Ásia. Em 27 de fevereiro de 1799, com 18 mil homens, começou sua marcha do Cairo para a Síria. Primeiro ele tomou o forte de El-Arish, no deserto, depois Jafa (a cidade de Jope da Bíblia), conquistou os habitantes de Nablus em Zeta e foi vitorioso novamente em Jafet. Enquanto isso, um grande exército de turcos se entrincheirou em St. Jean d’Acre, enquanto multidões de muçulmanos se reuniram nas montanhas de Samaria, prontas para atacar os franceses quando cercassem Acre. Na mesma época, Sir Sidney Smith apareceu em St. Jean d’Acre com dois navios ingleses, reforçou as forças turcas do lugar e capturou o aparato do cerco, que Napoleão havia enviado por mar de Alexandria. Uma frota turca logo apareceu em alto-mar, que, juntamente com as embarcações russas e inglesas cooperando com ela, formaram os “muitos navios” do rei do norte. DAP 226.2
No dia 18 de março, o cerco começou. Napoleão foi chamado duas vezes a impedir que algumas divisões francesas caíssem nas mãos de bandos muçulmanos que preenchiam a terra. Duas vezes também foi feita uma brecha nos muros da cidade. Mas aqueles que fizeram o ataque foram confrontados com tanta fúria pela guarnição que foram obrigados, a despeito de seus melhores esforços, a abrir mão da luta. Após continuar por 60 dias, Napoleão levantou o cerco e anunciou, pela primeira vez em sua carreira, uma nota de retirada. No dia 21 de maio de 1799, começou a retomar o caminho para o Egito. DAP 226.3
“E as inundará, e passará”. Encontramos acontecimentos que fornecem evidências muito marcantes para o cumprimento da luta do rei do sul e da arremetida do rei do norte contra o poder francês. Até aqui existe consenso geral na aplicação da profecia. Alcançamos agora um ponto em que a visão dos eruditos começa a divergir. A quem as palavras “e as inundará, e passará” se referem? À França ou ao rei do norte? A aplicação do restante do capítulo depende da resposta a essa pergunta. A partir desse ponto, duas linhas de interpretação são defendidas. Alguns aplicam as palavras à França e tentam encontrar o cumprimento na carreira de Napoleão. Outros as aplicam ao rei do norte e, em consequência, apontam para um cumprimento nos acontecimentos da história da Turquia. Vamos comentar apenas sobre essas duas posições, uma vez que a tentativa que alguns procuram fazer de trazer o papado para esse texto é tão obviamente fora de contexto que sua análise nem precisa nos deter. Como nenhuma dessas posições é isenta de dificuldades, conforme presumimos que ninguém dirá ser, resta-nos ficar com aquela que tem o peso das evidências a seu favor. E descobriremos que uma delas conta com o peso das evidências tão forte a seu favor, à exclusão das outras, que mal resta espaço para dúvida acerca do ponto de vista aqui mencionado. DAP 226.4
No que diz respeito à aplicação dessa parte da profecia a Napoleão ou à França sob sua liderança, em tudo que conhecemos acerca da história, não encontramos eventos que possam indicar com qualquer grau de certeza o cumprimento da parte restante desse capítulo. Por isso, não compreendemos que possa receber tal aplicação. Deve, então, ser cumprida pela Turquia, a menos que se demonstre: 1) que a expressão “rei do norte” não se aplica à Turquia, ou 2) que existe outro poder além da França ou do rei do norte que cumpriu essa parte da predição. Mas se a Turquia, que agora ocupa o território que formava a parte norte do império de Alexandre, não for o rei do norte da profecia, ficamos sem nenhum princípio para nos guiar na interpretação. E presumimos que todos concordam que não há brecha para a introdução de outro poder aqui. O rei da França e o rei do norte são os únicos aos quais a predição pode se aplicar. O cumprimento deve ficar entre os dois. DAP 227.1
Algumas considerações certamente favorecem a ideia de que existe, na última parte do versículo 40, uma transferência do enfoque da profecia do poder francês para o rei do norte. O último é apresentado como uma força bruta, que chega com carros, cavaleiros e muitos navios. A colisão entre esse poder e os franceses já foi destacada. O rei do norte, com o auxílio de seus aliados, alcançaram a vitória naquela batalha. E os franceses, tolhidos em seus esforços, foram acuados de volta para o Egito. Agora seria uma aplicação muito mais natural relacionar a “inundação” e a “passagem” ao poder que emergiu triunfante dessa batalha; e tal poder foi a Turquia. Acrescentamos apenas que um erudito em língua hebraica nos garante que a construção gramatical da passagem no hebraico forçosamente correlaciona a inundação e a passagem ao rei do norte. Tais palavras expressam o resultado do movimento que acabara de ser comparado à fúria de um vendaval que arremete. DAP 227.2
VERSÍCULO 41. Entrará também na terra gloriosa, e muitos sucumbirão, mas do seu poder escaparão estes: Edom, e Moabe, e as primícias dos filhos de Amom. DAP 227.3
Os fatos que acabamos de mencionar acerca da campanha dos franceses contra a Turquia e a retirada dos primeiros em St. Jean d’Acre foram extraídos, em sua maior parte, da Encyclopedia Americana. Da mesma fonte extraímos detalhes adicionais a respeito da retirada dos franceses para o Egito e os outros reveses que os levaram a deixar esse país. DAP 227.4
Abandonando uma campanha na qual um terço do exército sucumbira à guerra e a doenças, os franceses se retiraram de St. Jean d’Acre e, após uma marcha fatigante de 26 dias, voltaram ao Cairo, no Egito. Assim abandonaram todas as conquistas que haviam feito na Judeia; e a “terra gloriosa”, a Palestina, com todas as suas províncias, voltou a cair sob o domínio opressor dos turcos. Edom, Moabe e Amom, que ficam fora dos limites da Palestina, ao sul e a leste do Mar Morto e do Jordão, por não fazerem parte do trajeto dos turcos da Síria até o Egito, escaparam da destruição da campanha militar. Sobre esta passagem, Adam Clarke faz a seguinte observação: DAP 228.1
“Esses e outros árabes, eles [os turcos] nunca conseguiram dominar. Continuam a povoar os desertos e recebem uma pensão anual de 40 mil coroas de ouro dos imperadores otomanos para permitirem que as caravanas dos peregrinos para Meca recebam livre passagem.” DAP 228.2
VERSÍCULO 42. Estenderá a mão também contra as terras, e a terra do Egito não escapará. DAP 228.3
Na retirada da França para o Egito, a frota turca apareceu com 18 mil homens em Aboukir. Napoleão atacou o local imediatamente, expulsando os turcos por completo e retomando sua autoridade no Egito. Nessa época, porém, diversos reveses sofridos pelas forças francesas na Europa exigiram que Napoleão voltasse para casa a fim de zelar pelos interesses do seu próprio país. O comando das tropas egípcias foi deixado a cargo do general Kleber, o qual, após um período de incansável atividade em benefício do exército, foi assassinado por um turco no Cairo. O comando ficou então com Abdallah Menou. Com um exército que não podia ganhar novos reforços humanos, cada perda era grave. DAP 228.4
Enquanto isso, o governo inglês, aliado dos turcos, havia decidido livrar o Egito dos franceses. No dia 13 de março de 1801, uma frota inglesa desembarcou tropas em Aboukir. Os franceses compareceram para batalhar no dia seguinte, mas foram forçados a se retirar. No dia 18, Aboukir se rendeu. Em 28, foram levados reforços por uma frota turca e o grão-vizir se aproximava da Síria com um vasto exército. No dia 19, Rosetta se rendeu às forças aliadas dos ingleses e turcos. Em Ramanieh, uma tropa francesa de 4 mil homens foi derrotada por 8 mil ingleses e 6 mil turcos. Em Elmenayer, 5 mil franceses foram obrigados a se retirar no dia 16 de maio pelo vizir, que marchava em direção ao Cairo com 20 mil homens. Todo o exército francês se encontrava agora confinado ao Cairo e a Alexandria. O Cairo capitulou em 27 de junho e a Alexandria, no dia 2 de setembro. Quatro semanas depois, em 1º de outubro de 1801, um tratado preliminar de paz foi assinado em Londres. DAP 228.5
“A terra do Egito não escapará” foram as palavras da profecia. Essas palavras parecem indicar que o Egito seria dominado por algum poder de cujo domínio gostaria de ser libertado. Entre os franceses e os turcos, como os egípcios viam a situação? Eles preferiam o domínio francês. Na obra de R. R. Madden, Travels in Egypt, Nubia, Turkey, and Palestine in the years 1824-1827 [Viagens pelo Egito, pela Núbia, Turquia e Palestina nos anos 1824-1827], publicada em Londres em 1829, conta-se que a partida dos franceses era muito lamentada e estes eram exaltados como benfeitores; que “pelo pouco período que permaneceram, deixaram traços de melhorias”; e que se pudessem ter estabelecido seu poder, o Egito seria agora relativamente civilizado. Levando em conta esse testemunho, as palavras não seriam adequadas se aplicadas aos franceses. Os egípcios não desejavam escapar de suas mãos. Eles queriam escapar das mãos dos turcos, mas não conseguiram. DAP 228.6
VERSÍCULO 43. Apoderar-se-á dos tesouros de ouro e de prata e de todas as coisas preciosas do Egito; os líbios e os etíopes o seguirão. DAP 229.1
Para ilustrar este versículo, citamos o trecho a seguir de Historic Echoes of the Voice of God [Ecos Históricos da Voz de Deus], p. 49: DAP 229.2
“A história apresenta estes fatos: quando os franceses foram expulsos do Egito e os turcos tomaram posse, o sultão permitiu que os egípcios reorganizassem seu governo da forma que era antes da invasão francesa. Ele não pediu soldados, armas, nem fortificações dos egípcios, mas os deixou administrar as próprias questões de maneira independente, com a importante exceção de que a nação lhe deveria pagar tributo. Nas cláusulas do acordo entre o sultão e o paxá do Egito, ficou estipulado que os egípcios pagariam anualmente ao governo turco determinada quantidade de ouro e prata, bem como ‘600 mil medidas de trigo e 400 mil de cevada.’” DAP 229.3
“Os líbios e os etíopes”, “os cuxitas”, diz o Dr. Clarke, são “os árabes não conquistados”, que procuraram a amizade dos turcos. Muitos deles continuam a lhes pagar tributos até o presente. DAP 229.4
VERSÍCULO 44. Mas, pelos rumores do Oriente e do Norte, será perturbado e sairá com grande furor, para destruir e exterminar a muitos. DAP 229.5
Dr. Clarke fez um comentário sobre este versículo que merece ser mencionado. Ele afirmou: “Essa parte da profecia possivelmente não foi cumprida ainda”. Essa nota foi publicada em 1825. Em outra parte de seu comentário, ele declara: “Caso se entenda uma referência ao poder turco, como nos versículos anteriores, pode significar que os persas no oriente e os russos ao norte irão, em algum momento, causar grande embaraço ao governo otomano”. DAP 229.6
Entre essa conjectura do Dr. Clarke, escrita em 1825, e a Guerra da Crimeia entre 1853 e 1856, há, sem dúvida, uma coincidência impressionante, pois exatamente os poderes que ele menciona, os persas no oriente e os russos ao norte, foram os instigadores desse conflito. Rumores desses poderes o perturbaram (Turquia). As atitudes e os movimentos deles incitaram o sultão à ira e à vingança. A Rússia, a parte mais agressiva, foi alvo de ataque. A Turquia declarou guerra contra seu poderoso vizinho do norte em 1853. O mundo olhou perplexo ao ver um governo que já por muito tempo era chamado de “Homem Doente do Oriente”, cujo exército era desanimado e desmoralizado, cujos tesouros estavam vazios, cujos governantes eram vis e imbecis, e cujos súditos eram rebeldes e ameaçavam se revoltar, envolver-se com tamanho ímpeto no conflito. A profecia disse que eles sairiam com “grande furor”; e assim eles saíram na guerra já mencionada. Foram descritos, no vernáculo profano de um escritor norte-americano, como “lutando como demônios”. É verdade que a Inglaterra e a França logo socorreram a Turquia. Mas ela de fato saiu da maneira descrita e, conforme o registro, obteve vitórias importantes antes de receber a ajuda desses poderes. DAP 229.7
VERSÍCULO 45. Armará as suas tendas palacianas entre os mares contra o glorioso monte santo; mas chegará ao seu fim, e não haverá quem o socorra. DAP 230.1
Desdobramos até aqui o passo a passo da profecia da Daniel 11, encontrando os eventos que cumprem todas as suas predições. Tudo se encontra no registro da história, com a exceção deste último versículo. As predições do versículo anterior se cumpriram dentro do período da memória da geração que hoje vive; e agora somos levados além dos nossos dias, para o futuro, pois nenhum poder até hoje realizou os atos aqui descritos. Mas eles se cumprirão. E o cumprimento será realizado pelo mesmo poder que tem sido o assunto contínuo da profecia do versículo 40 até o 45. Caso a aplicação à qual demos preferência ao longo dos últimos versículos esteja mesmo correta, devemos aguardar que a Turquia faça os movimentos aqui indicados. DAP 230.2
E que fique claro quão rapidamente isso poderia acontecer. A Palestina, que contém “o glorioso monte santo”, a montanha na qual Jerusalém se encontra, “entre os mares”, o mar Morto e o Mediterrâneo, é uma província turca. E se os turcos forem obrigados a se retirar apressadamente da Europa, podem facilmente ir para qualquer lugar de seus domínios a fim de estabelecer uma sede temporária, descrita adequadamente nesta passagem como “tendas palacianas”, ou seja, habitações móveis; mas não poderiam ir além. O ponto mais notável dentro das fronteiras da Turquia na Ásia é Jerusalém. DAP 230.3
Além disso, note como a linguagem usada se aplica a esse poder: “Chegará ao seu fim, e não haverá quem o socorra”. Essa expressão sugere com clareza que esse poder já recebeu ajuda no passado. E quais são os fatos? Na guerra contra a França em 1798-1801, a Inglaterra e a Rússia auxiliaram o sultão. Na guerra entre a Turquia e o Egito em 1838-1840, a Inglaterra, a Rússia, a Áustria e a Prússia intervieram em favor da Turquia. Na Guerra da Crimeia em 1853-1856, a Inglaterra, a França e a Sardenha apoiaram os turcos. E na recente guerra russo-turca, os grandes poderes da Europa interferiram para deter o progresso da Rússia. Sem o auxílio recebido em todos esses casos, a Turquia dificilmente teria conseguido manter sua posição. É fato notório que, desde a queda da supremacia otomana em 1840, o império só existe por causa da condescendência dos grandes poderes europeus. Sem o prometido apoio deles, a Turquia não conseguiria, há muito tempo, nem mesmo manter uma existência nominal. E quando este for retirado, ela cairá por terra. A profecia diz que o rei chegará a seu fim e não haverá quem o socorra. Podemos inferir naturalmente que isso acontece porque ninguém o socorre, ou seja, porque o apoio prestado até então é retirado. DAP 230.4
Temos algum indício de que essa parte da profecia se cumprirá logo? Ao fazermos essa pergunta, olhamos não para eras turvas e distantes no passado, cujos acontecimentos há tanto passaram para a página da história e que hoje interessam apenas a poucos, mas, sim, para o mundo vivo, presente, em movimento. Estão as nações que hoje ocupam o palco de ação, com seus exércitos disciplinados e múltiplas armas de guerra, fazendo qualquer movimento que se encaminhe para esse fim? DAP 230.5
Todos os olhos se voltam agora com interesse para a Turquia. E a opinião unânime dos estadistas é que logo os turcos serão banidos da Europa. Alguns anos atrás, um correspondente do periódico Tribune, de Nova York, escrevendo do Oriente, disse: “A Rússia está armada até os dentes […] para se vingar da Turquia. […] Duas campanhas do exército russo varrerão os turcos da Europa”. Carleton, ex-correspondente do Journal, de Boston, escrevendo de Paris, no artigo denominado “The Eastern Question” [A Questão Oriental], afirmou: DAP 231.1
“O tema das conversas ao longo da última semana não tem sido a Exposição, mas, sim, a “questão oriental”. Em que ela dará? Haverá guerra? O que a Rússia vai fazer? Que posição os poderes ocidentais irão assumir? Essas são questões debatidas não só em cafés e restaurantes, mas também no Corps Legislatif. Talvez o melhor serviço que posso prestar no momento seja reunir alguns fatos a respeito desse assunto, que, de acordo com os indícios atuais, está prestes a despertar atenção imediata do mundo. O que é a “questão oriental”? Não é fácil dar uma definição. Pois, para a Rússia, pode significar uma coisa, para a França outra, para a Áustria outra ainda, mas, reunindo todos os lados, ela pode ser reduzida ao seguinte: a expulsão dos turcos para a Ásia e a disputa por seu território.” DAP 231.2
Ele diz ainda: DAP 231.3
“Certamente, os indicativos são que o sultão logo verá a fronteira ocidental de seus domínios se esfacelar, pedaço por pedaço. Mas o que virá em seguida? Romênia, Sérvia, Bósnia e Albânia se estabelecerão como uma soberania independente juntas e assumirão seu lugar entre as nações? Ou haverá uma grande corrida pelo patrimônio dos otomanos? Mas isso cabe ao futuro, um futuro não tão distante”. DAP 231.4
Pouco depois que os trechos acima foram escritos, uma revolução surpreendente ocorreu na Europa. A França, uma das partes, se não a principal delas, na aliança para a manutenção do trono otomano, foi esmagada pela Prússia na Guerra Franco-Prussiana de 1870. A Prússia, mais uma parte, simpatizava demais com a Rússia para interferir em seus movimentos contra os turcos. A Inglaterra, uma terceira, se encontrava em uma condição financeira complicada e não podia nem pensar em entrar em qualquer conflito em defesa da Turquia sem a aliança dos franceses. A Áustria não havia se recuperado do golpe que recebera na guerra anterior com a Prússia; e a Itália estava ocupada com o problema de destituir o papa de seu poder temporal e em transformar Roma na capital da nação. Um autor do Tribune, de Nova York, observou que, caso a Turquia se envolvesse em dificuldades com a Rússia, poderia contar com o pronto “auxílio da Áustria, França e Inglaterra”. Mas nenhum desses poderes, nem qualquer outro propenso a ajudar a Turquia, estavam em condições de fazê-lo no momento mencionado, principalmente por causa da humilhação repentina e inesperada da França como nação, conforme relatado acima. DAP 231.5
A Rússia percebeu então que sua oportunidade havia chegado. Chocou todos os poderes da Europa no outono do mesmo memorável ano, 1870, ao anunciar de maneira deliberada que optara por não levar mais em conta as cláusulas do tratado de 1856. Esse tratado, firmado ao fim da Guerra da Crimeia, restringia as operações bélicas da Rússia na região do Mar Negro. Mas a Rússia precisaria usar tais águas com objetivos militares a fim de cumprir seus desígnios contra a Turquia. Daí a determinação em desconsiderar o tratado justamente na época em que nenhum dos poderes estava em condições de garantir sua vigência. DAP 232.1
O motivo ostensivo usado pela Rússia para justificar seus movimentos nessa direção foi a necessidade de ter um front marítimo e portos em um clima mais quente que o das praias do Báltico; mas a real intenção era atacar a Turquia. Por isso, o periódico Churchman, de Hartford, Connecticut, em um excelente artigo sobre a atual “confusão europeia”, afirma que a Rússia, em sua intromissão na Turquia, “não está meramente em busca de uma fronteira marítima e de portos que fiquem nas grandes rotas comerciais, sem sofrer a restrição de invernos árticos. Em vez disso, com um sentimento semelhante ao que inspirou as Cruzadas, é movida pelo desejo intenso de expulsar a Lua Crescente do solo da Europa”. DAP 232.2
Esse desejo por parte da Rússia tem sido acariciado como um legado sagrado desde a época de Pedro, o Grande. Esse célebre príncipe se tornou o único imperador da Rússia em 1688, aos 16 anos de idade. Desfrutou um próspero reinado que durou 37 anos, até 1725. Deixou a seus sucessores um celebrado testamento, no qual transmitiu algumas instruções importantes para que observassem a todo tempo. O nono artigo desse testamento recomendava a seguinte política: DAP 232.3
“Usar todos os meios necessários para conquistar Constantinopla e as Índias (pois quem governar lá será o verdadeiro soberano do mundo); instigar guerras continuamente na Turquia e na Pérsia; estabelecer fortalezas no Mar Negro; obter o controle do mar passo a passo, e também do Báltico, duas condições necessárias para a realização de nosso projeto. Acelerar, tanto quanto possível a decadência da Pérsia; entrar no Golfo Pérsico; restabelecer, se possível, pelo caminho da Síria, a antiga rota comercial do Levante; avançar para as Índias, onde se encontram as grandes reservas do mundo. Uma vez lá, poderemos nos virar sem o ouro da Inglaterra.” DAP 232.4
O 11º artigo diz: DAP 232.5
“Interessar a corte da Áustria na expulsão dos turcos da Europa e silenciar suas dissensões no momento da conquista de Constantinopla (depois de ter incitado guerra entre os antigos estados da Europa), dando à Áustria parte da conquista, que depois será ou poderá ser reconquistada.” DAP 232.6
Os fatos a seguir da história russa mostram como essa política foi seguida com persistência: DAP 234.1
“Em 1696, Pedro, o Grande, tomou o mar de Azov dos turcos e o manteve sob seu domínio. Em seguida, Catarina, a Grande, conquistou a Crimeia. Em 1812, mediante a paz de Bucareste, Alexandre I obteve a Moldávia e a província belamente chamada de Bessarábia, com suas maçãs, cerejas e seus pêssegos. Veio então o grande Nicolau, que conquistou o direito da livre navegação pelo Mar Negro, Dardanelos e Danúbio, mas cuja ganância desmedida o levou ao envolvimento na Guerra da Crimeia, na qual perdeu a Moldávia e o direito de navegação pelo Danúbio, bem como de navegação irrestrita pelo Mar Negro. Sem dúvida, essa foi uma recuada grave para a Rússia, mas não extinguiu suas intenções sobre o poder otomano, nem contribuiu, em nenhum aspecto essencial, para a estabilidade do último. Aguardando com toda a paciência, a Rússia tem observado e esperado. Em 1870, quando todas as nações ocidentais estavam de olho na Guerra Franco-Prussiana, ela anunciou a esses poderes que não se limitaria mais pelo tratado de 1856, o qual lhe restringia o uso do Mar Negro. Desde então, esse mar, para todas os efeitos, tem sido, assim como mil anos antes, um mare Russicum (San Francisco Chronicle [Crônicas de São Francisco]). DAP 234.2
Napoleão Bonaparte entendia bem as intenções da Rússia e a importância de seus movimentos calculados. Enquanto prisioneiro na ilha de Santa Helena, ao conversar com o governador Sir Hudson Lowe, expressou a seguinte opinião: DAP 234.3
“No decorrer de alguns anos, a Rússia dominará Constantinopla, parte da Turquia e toda a Grécia. Tenho tanta certeza disso quanto se já houvesse acontecido. Alexandre despendeu toda sua adulação e lisonja em minha direção para obter meu consentimento a esse respeito. Não cedi, prevendo que o equilíbrio da Europa seria destruído. Uma vez senhora de Constantinopla, a Rússia obterá domínio sobre todo o comércio do Mediterrâneo, se tornará uma potência naval e, então, só Deus sabe o que pode acontecer. Meu objetivo ao invadir a Rússia era impedir essas coisas, interpondo um novo estado entre ela e a Turquia, o qual eu desejava criar como barreira para suas intromissões orientais.” DAP 234.4
Kossuth também assumiu o mesmo ponto de vista da situação política quando afirmou: “Na Turquia se decidirá o destino do mundo”. DAP 234.5
As palavras de Bonaparte, citadas acima, em referência à destruição do “equilíbrio da Europa”, revelam o motivo que induziu os grandes poderes a tolerar por tanto tempo a existência de uma nação no continente cuja religião é falsa, destituída de humanidade e uma desgraça à civilização moderna. Constantinopla é considerada, por consenso geral, o grande ponto estratégico da Europa. E as potências têm sagacidade ou desconfiança suficiente para ver, ou pensar que veem, o fato de que, se um dos poderes europeus obtiver posse permanente do local, como a Rússia deseja, esse poder poderá ditar os termos para o restante da Europa. Tal posição nenhuma das potências está disposta a permitir que algum outro poder desfrute. E a única forma óbvia de impedir isso é todos se unirem, em acordo tácito ou expresso, para manter um ao outro fora e permitir que os temíveis turcos continuem com sua existência asiática doentia em solo europeu. É isso que significa preservar o “equilíbrio do poder”, com o qual todos tanto se preocupam. Mas essa situação não continuará para sempre. “Chegará ao seu fim, e não haverá quem o socorra”. O homem doente parece determinado a crescer o mais rapidamente possível a um ponto de tamanha hostilidade que a Europa se verá obrigada a expulsá-lo para a Ásia, caso deseje garantir a segurança de sua própria civilização. DAP 234.6
Em 1870, quando a Rússia anunciou sua intenção de desconsiderar o tratado de 1856, os outros poderes, embora incapazes de fazer qualquer coisa, fizeram, contudo, uma grande demonstração de dignidade ofendida, pois o assunto tinha grande peso para eles. Um congresso de nações foi exigido e o pedido atendido. Tal evento foi realizado e se comprovou, conforme todos esperavam, uma farsa no que se refere a refrear a Rússia. O jornal Chronicle, da cidade de São Francisco, de março de 1871, traz o seguinte parágrafo a respeito do “Congresso sobre a Questão Oriental”: DAP 235.1
“É bem evidente que, no que diz respeito a orientar ou controlar as ações do governo de Moscou, o congresso é pouco mais do que uma farsa. A Inglaterra teve a ideia de realizar o evento simplesmente porque este lhe daria a oportunidade de abandonar, sem desonra para si, a posição que havia assumido um tanto quanto precipitadamente; e a Rússia foi complacente o bastante para entrar no “joguinho”, satisfeita de que não perderia nada com seu ato de cortesia. A Turquia foi a única parte prejudicada nesse engenhoso arranjo. Foi deixada face a face com seu inimigo implacável há gerações. Pois as nações que até então a haviam ajudado, supostamente por amizade e amor à justiça, mas, em verdade, por interesse próprio, se esquivaram do desafio tão abertamente lançado na arena pelo Colosso do Norte. É fácil antever o fim dessa conferência. A Rússia conseguirá tudo aquilo que reivindica e mais um passo será dado rumo à realização do testamento de Pedro, o Grande; e o sultão receberá uma prova prévia de sua ruína aparentemente inevitável: a expulsão da Europa.” DAP 235.2
A partir desse momento, as brasas da “questão oriental” continuaram a agitar e alarmar as nações da Europa, até que, em 1877, as chamas ganharam nova vida. No dia 24 de abril desse ano, a Rússia declarou guerra contra a Turquia, usando a desculpa de defender os cristãos das barbaridades desumanas dos turcos, mas, em realidade, com o objetivo de fazer mais uma tentativa de colocar em prática a tão acariciada determinação de expulsar os turcos da Europa. Os acontecimentos e os resultados dessa guerra de 1877-1878 são tão recentes que o leitor terá facilidade em se recordar deles. Ficou evidente, desde o princípio, que a Turquia tinha um adversário superior. A Rússia continuou suas investidas até que os próprios postos avançados de Constantinopla fossem ocupados por suas forças. Mas a diplomacia das nações alarmadas da Europa se envolveu mais uma vez e conseguiu suspender a disputa por um tempo. O Congresso de Berlim foi realizado em 25 de janeiro de 1878. A Turquia concordou em assinar os termos de paz. As condições eram que os estreitos de Dardanelos deveriam ficar abertos aos navios russos; que os russos ocupariam Batoum, Kars e Erzeroum; que a Turquia pagaria 20 milhões de libras esterlinas (quase 100 milhões de dólares) à Rússia como indenização de guerra; e que o tratado seria assinado em Constantinopla. Ao fazer esse anúncio, o periódico Allgemeine Zeitung acrescentou: “A eventual entrada dos russos em Constantinopla não pode mais ser considerada impraticável”. DAP 235.3
A publicação Evening News [Notícias Vespertinas], de Detroit, do dia 20 de fevereiro de 1878, relatou: DAP 236.1
“De acordo com a versão mais recente das condições de paz, a Turquia — além das perdas territoriais, da entrega de alguns couraçados, dos reparos na foz do Danúbio, do reembolso de capital russo investido em títulos de crédito turcos, da indenização aos súditos russos em Constantinopla por perdas de guerra e da manutenção de cerca de 100 mil prisioneiros de guerra — precisará pagar à Rússia, em números redondos, uma soma equivalente a cerca de 552 milhões em nossa moeda. Os itens não avaliados aumentam facilmente esse total para 600 milhões. Com seu território tributável reduzido praticamente à Ásia Menor, região assolada pela pobreza, e com as finanças atuais em situação de caos absoluto, fica difícil entender como conseguirá o dinheiro, por mais dispostos que os governantes estejam a assinar o acordo.” DAP 236.2
“A proposição equivale a entregar ao czar uma hipoteca permanente de todo o império e contém a ameaça implícita de que ele pode reivindicá-lo como seu a qualquer momento, tomando o restante da Turquia europeia. A esse respeito, toda a Europa tem interesse vital na questão, e a Inglaterra em especial, mesmo que as condições não tenham sido calculadas para enlouquecer os credores ingleses, destruindo sua última esperança de receber um centavo de volta de seus grandes investimentos em títulos turcos. Tal conjuntura transforma a Rússia no credor preferido do falido império otomano, com a vantagem adicional de ser o procurador das posses, deixando os credores anteriores a ver navios.” DAP 236.3
O parágrafo a seguir, extraído da publicação Public Ledger [Registro Público], de Filadélfia, edição de agosto de 1878, traz uma explicação muito sugestiva e rica em informações para o encolhimento do território turco ao longo dos últimos 60 anos, sobretudo como consequência da guerra de 1877: DAP 236.4
“Qualquer um que se der ao trabalho de olhar para o mapa da Turquia na Europa de cerca de 60 anos atrás e compará-lo com o novo mapa traçado pelo tratado de San Stefano, conforme as modificações do Congresso de Berlim, conseguirá formar uma opinião sobre a marcha do progresso que pressiona o poder otomano para fora da Europa. Naquela época, a fronteira norte da Turquia se estendia até os Montes Cárpatos. A leste do rio Siret, abraçava a Moldávia até quase 47 graus de latitude norte. Esse mapa englobava também o que é hoje o reino da Grécia. Abrangia toda a Sérvia e a Bósnia. Mas, por volta de 1830, a fronteira norte da Turquia foi recuada dos Cárpatos para a margem sul do Danúbio. Os principados da Moldávia e da Valáquia se emanciparam do domínio turco, sujeitos somente ao pagamento de um tributo anual em dinheiro aos otomanos. Ao sul do Danúbio, os sérvios também conquistaram uma emancipação semelhante de seu país. A Grécia também recebeu condições de estabelecer sua independência. Naquela época, assim como recentemente, a Turquia era truculenta e obstinada. A Rússia e a Grã-Bretanha propuseram transformar a Grécia em estado tributário, conservando a soberania turca. Mas tal pedido foi negado, e o resultado foi a completa destruição da poderosa frota turca em Navarino, bem como o surgimento do reino independente da Grécia. Agora a Turquia se encontrava pressionada para trás de todos os lados na Europa. A fronteira setentrional, que tão recentemente chegava até o Danúbio, foi afastada mais para o sul, até os Bálcãs. A Romênia e a Sérvia deixaram de ser estados tributários e assumiram seu lugar em meio aos estados independentes. A Bósnia se colocou sob a proteção da Áustria, assim como a Romênia sob a proteção russa em 1829. Fronteiras “retificadas” dão à Sérvia, Montenegro e à Grécia partes do território turco. A Bulgária assumiu o lugar da Romênia como principado de governo independente, sem nenhuma relação com a Turquia, apenas pagando tributo anual. Até mesmo ao sul dos Bálcãs o poder dos turcos está reduzido, pois a Rumélia deve ter “governo doméstico”, sob a liderança de um político cristão. Desse modo, mais uma vez as fronteiras da Turquia na Europa são pressionadas de todos os lados, até o território se transformar apenas em uma sombra do que era há 60 anos. Alcançar esse resultado tem sido a política e a batalha da Rússia por mais de meio século. Ao longo de praticamente o mesmo período, alguns dos outros “poderes” têm lutado para manter a “integridade” do império turco. Uma comparação de mapas em intervalos de 25 anos mostra qual política foi bem-sucedida e qual fracassou. A Turquia na Europa se reduziu ao longo do último meio século e está se encolhendo cada vez mais em direção à Ásia; e embora todas as “potências”, com exceção da Rússia, unam as forças para a manutenção do sistema otomano na Europa, há um destino manifesto visível na história dos últimos 50 anos que deve derrotá-las. DAP 236.5
Um correspondente do periódico Christian Union [União Cristã], escrevendo de Constantinopla no dia 8 de outubro de 1878, afirmou: DAP 238.1
“Quando analisamos as dificuldades que agora cercam esse governo frágil e cambaleante, a única surpresa é ele conseguir resistir por um dia sequer. Além da dívida fixa de 1 bilhão de dólares, sobre a qual não paga juros, conta ainda com uma enorme dívida flutuante que representa todas as despesas da guerra. Seus servidores não são pagos. O exército não foi dispensado, nem sequer reduzido. E a moeda perdeu praticamente todo seu valor. As pessoas estão desanimadas e esperam, todos os dias, alguma revolução nova ou retomada da guerra. O governo não sabe de quem desconfiar mais, se de seus amigos ou inimigos. DAP 238.2
Desde 1878, a tendência de todos os movimentos no Oriente tem sido na mesma direção, pressagiando maior pressão sobre o governo turco na direção de sua expulsão do solo europeu. A ocupação do Egito pelos ingleses, que ocorreu em 1883, foi outro passo rumo a esse resultado inevitável, um movimento que o Independent, de Nova York, aventurou-se a chamar de “o princípio do fim”. DAP 238.3
Em 1895, o mundo foi chocado pelo relato das terríveis atrocidades que os turcos e curdos infligiram sobre os armênios. Relatos confiáveis revelam que muitos milhares foram executados, com todos os requintes de crueldade demoníaca. Por meio de seus embaixadores, as nações protestam e ameaçam. O sultão promete, mas não faz nada. Fica claro que ele não tem a disposição, e talvez nem mesmo o poder, para conter a maré de sangue. Muçulmanos fanáticos parecem tomados pelo frenesi de destruir todos os homens armênios e levar suas mulheres e filhos como escravos, ou para um destino ainda mais lamentável. No momento em que escrevo (janeiro de 1897), conta-se que milhares de viúvas e órfãos vagueiam pelas montanhas da Armênia, morrendo de fome e de frio. E eles estendem as mãos desesperadas para a Inglaterra e os Estados Unidos, na esperança de que estes os salvem da destruição total. Um sentimento de horror tomou conta da cristandade e um clamor tem se levantado de todas as terras: “Que os turcos sejam expulsos e cheguem ao fim!” No entanto, o egoísmo das nações e a desconfiança de uma para com a outra as impedem de deter esse carnaval de matança e ruína por meio do destronamento da terrível Turquia. Até quando, Senhor? DAP 238.4
Desse modo, todas as evidências servem para mostrar que os turcos logo deverão deixar a Europa. Onde eles colocarão suas tendas palacianas? Em Jerusalém? Sem dúvida, esse é o local mais provável. Newton, em seu livro Prophecies [Profecias], p. 318, declara: DAP 239.1
“‘Entre os mares contra o glorioso monte santo’ deve denotar, conforme já demonstramos, alguma parte da terra santa. Lá os turcos montarão acampamento com todos os seus poderes. Todavia, ‘chegará ao seu fim, e não haverá quem o socorra’, isto é, quem o ajude de maneira eficaz, ou o livre.” DAP 239.2
O tempo logo determinará essa questão e pode ser questão de meses. Quando isso acontecer, o que se seguirá? Acontecimentos do mais extremo interesse para todos os habitantes deste mundo, conforme o capítulo seguinte revela imediatamente. DAP 239.3
Nota: Desde o momento em que estas palavras foram escritas, a situação na Turquia tem ficado cada vez pior. Os massacres aos armênios continuaram e, entre janeiro e setembro de 1896, surgiram rebeliões contra os turcos em Creta e na Macedônia. Além disso, muçulmanos fanáticos têm dado sinais de insatisfação com o sultão e ameaçam uma revolução. Perturbações sérias acabam de acontecer (setembro de 1896) em Constantinopla, as quais resultaram no extermínio de cerca de 2 mil armênios. Os chefes de estado da Europa se encontram em consulta acerca da tendência dos acontecimentos na Turquia, com a perspectiva de que é preciso chegar a alguma resolução. Desse modo, o único obstáculo para a dissolução do império turco será removido. DAP 239.4