História do Sábado
14 – As Primeiras Testemunhas a Favor do Domingo
Origem da observância do domingo, o foco desta pesquisa – Declarações contraditórias de Mosheim e Neander – Apresentação do ponto de debate entre eles e dos verdadeiros dados necessários para resolver a questão – O Novo Testamento não apresenta evidências para apoiar a declaração de Mosheim – Epístola de Barnabé: uma farsa – O testemunho de Plínio nada determina sobre o assunto – A epístola de Inácio provavelmente é espúria e, certamente, entremeada de interpolações nos pontos que a fazem apoiar o domingo – Decisão do assunto HS 151.1
O primeiro dia da semana é quase que universalmente observado como o sábado cristão, mas resta-nos ainda investigar a origem dessa instituição. Ela é apresentada por dois proeminentes historiadores da igreja. Mas eles se contradizem de maneira tão direta que se torna uma questão de curioso interesse determinar qual deles diz a verdade. Mosheim escreve o seguinte acerca do primeiro século: HS 151.2
“Todos os cristãos unanimemente separavam o primeiro dia da semana, no qual o Salvador triunfantemente ressuscitou dos mortos, para a solene celebração de adoração pública. Esse costume piedoso, derivado do exemplo da igreja de Jerusalém, baseava-se na ordem expressa dos apóstolos, que consagraram esse dia para o mesmo propósito santo, e era universalmente seguido em todas as igrejas cristãs, conforme aparece no testemunho uníssono dos autores mais confiáveis.”1 HS 151.3
Leiamos agora o que Neander, o mais distinto de todos os historiadores da igreja, diz acerca da autoridade apostólica em relação à observância do domingo: HS 151.4
“A festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança humana, e não era intenção dos apóstolos estabelecer uma ordem divina a esse respeito, e nem da igreja apostólica primitiva transferir as leis do sábado para o domingo. É possível que, ao fim do segundo século, uma falsa ordenança dessa natureza tenha começado a surgir, pois, ao que tudo indica, houve homens, nesse período, que passaram a considerar pecado trabalhar no domingo.”2 HS 151.5
Como determinar qual desses historiadores estava certo? Nenhum deles viveu na era apostólica da igreja. Mosheim foi um escritor do século 18 e Neander, do século 19. Necessariamente, portanto, sua fonte de informação sobre o assunto eram os escritos daquele período que foram preservados. Eles contêm todo o testemunho que pode ser usado para definir a questão. Temos, em primeiro lugar, os escritos inspirados do Novo Testamento; em segundo, as produções bem-conceituadas de escritores daquela era que, supostamente, mencionam o primeiro dia, a saber, 1) a epístola de Barnabé; 2) a carta de Plínio, governador da Bitínia, ao imperador Trajano e 3) a epístola de Inácio. Esses são todos os escritos datados da primeira metade do segundo século – época tardia o suficiente para abranger a declaração de Mosheim – que podem ser apresentados como pelo menos fazendo alguma referência ao primeiro dia da semana. HS 152.1
As questões que precisam ser definidas por esse testemunho são: os apóstolos separaram o domingo como dia de culto a Deus (como afirma Mosheim)? Ou as evidências demonstram que a festa do domingo, assim como todas as outras, sempre foi uma mera ordenança humana (conforme afirma Neander)? HS 152.2
Não há dúvida de que o Novo Testamento não contém nenhuma ordem estabelecendo o domingo como celebração solene de adoração pública. É igualmente verdade que não há exemplo algum, por parte da igreja de Jerusalém, em que se possa fundamentar tal observância. Logo, o Novo Testamento não fornece nenhum apoio3 à declaração de Mosheim. HS 152.3
As três epístolas que chegaram até nossos dias, e que supostamente foram escritas na era apostólica, ou logo após a mesma, serão as próximas analisadas. Esses são os únicos registros restantes que abrangem um período mais extenso do que o englobado pela declaração de Mosheim. Ele se refere apenas ao primeiro século; mas nós reunimos todos os autores desse século e do século seguinte, antes da época de Justino Mártir, 140 d.C., que possam ter mencionado o primeiro dia da semana. Desse modo, o leitor tem acesso a todas as informações sobre o ponto em questão. A epístola de Barnabé diz o seguinte em favor da observância do primeiro dia: HS 153.1
“Por fim, Ele lhes disse: não consigo suportar suas luas novas e seus sábados. Reflitam no que Ele quer dizer com isso. Os sábados que vocês agora guardam não Me são aceitáveis, mas sim aqueles que Eu fiz. Quando Eu descansar de todas as coisas, darei início ao oitavo dia, isto é, ao começo do outro mundo. Por isso guardamos o oitavo dia com alegria, no qual Jesus ressuscitou dos mortos; e, tendo Se manifestado a Seus discípulos, subiu ao Céu.”4 HS 153.2
Seria razoável concluir que Mosheim confiaria nesse testemunho como vindo de um apóstolo, considerando-o mais apto para defender a santidade do domingo do que qualquer outra passagem examinada por nós até aqui. Todavia, ele reconhece claramente que essa epístola é espúria: HS 153.3
“A epístola de Barnabé foi produzida por algum judeu que muito provavelmente viveu nesse século, e cujas modestas habilidades e apego supersticioso a fábulas judaicas mostram, apesar da retidão de suas intenções, que ele deve ter sido uma pessoa bem diferente do verdadeiro Barnabé, companheiro de São Paulo.”5 HS 153.4
Em outra obra, Mosheim diz o seguinte acerca dessa epístola: HS 153.5
“No que se refere à sugestão de alguns, a de que a carta foi escrita pelo mesmo Barnabé que foi amigo e companheiro de São Paulo, a inverdade de tal compreensão fica clara por meio da própria carta. Várias das opiniões e interpretações das Escrituras que ela contém possuem tão pouca verdade, dignidade ou força que seria impossível achar que pudessem ter procedido da pena de um homem instruído por Deus.”6 HS 153.6
Neander diz o seguinte sobre a epístola: HS 153.7
“É impossível reconhecer que essa epístola foi escrita por Barnabé, o homem digno de ser companheiro dos labores apostólicos de São Paulo.”7 HS 153.8
O professor Stuart dá um testemunho semelhante: HS 154.1
“Não duvido de que um homem chamado Barnabé tenha escrito essa epístola; mas que foi o companheiro escolhido por Paulo devo duvidar, assim como o fazem muitos outros.”8 HS 154.2
O Dr. Killen, professor de história eclesiástica da assembleia geral da Igreja Presbiteriana da Irlanda, usa as seguintes palavras: HS 154.3
“O livro conhecido como ‘Epístola de Barnabé’ provavelmente foi escrito em 135 d.C. Parece que foi produção de um converso do judaísmo que se agradava, de maneira especial, em fazer interpretações alegóricas das Escrituras.”9 HS 154.4
O professor Hackett dá o seguinte testemunho: HS 154.5
“A carta ainda existente, conhecida como epístola de Barnabé já no segundo século, não pode ser defendida como genuína.”10 HS 154.6
Milner diz o seguinte a respeito da renomada epístola de Barnabé: HS 154.7
“É uma grande injúria defender que a epístola que recebe esse nome é de sua autoria.”11 HS 154.8
Kitto declara sobre a obra: HS 154.9
“A suposta epístola de Barnabé é provavelmente uma falsificação do segundo século.”12 HS 154.10
A obra Encyclopedia of Religious Knowledge [Enciclopédia de Conhecimento Religioso], ao falar sobre o Barnabé do Novo Testamento, declara: HS 154.11
“Ele não poderia ser o autor de uma obra tão cheia de alegorias forçadas e explicações extravagantes e injustificadas das Escrituras, junto com as histórias sobre bestas e fantasias afins que constituem a primeira parte dessa epístola.”13 HS 154.12
Eusébio, o mais remoto historiador da igreja, coloca a epístola em sua lista de livros espúrios. Ele diz: HS 154.13
“Dentre os livros que devem ser considerados espúrios estão: o livro chamado ‘Os Atos de Paulo’, o chamado ‘Pastor’ e o ‘Apocalipse de Pedro’. Além desses, há também os livros chamados: ‘Epístola de Barnabé’ e ‘As Instituições dos Apóstolos.’”14 HS 154.14
O senhor William Domville afirma o seguinte: HS 155.1
“Mas a epístola não foi escrita por Barnabé. Ela não é meramente indigna dele – ela lhe seria uma desgraça e, o que é muito pior, seria uma desgraça para a religião cristã, caso fosse a produção literária de um dos mestres reconhecidos dessa religião nos tempos dos apóstolos. Caso seu autor fosse, de fato, Barnabé, a evidência para a origem divina do cristianismo ficaria gravemente prejudicada. Visto que a epístola não é de Barnabé, o documento, no que se refere à questão do sábado, nada mais é do que o testemunho de algum escritor desconhecido sobre a prática da observância do domingo, por alguns cristãos de uma comunidade desconhecida, em um período incerto da era cristã, sem fundamento suficiente para se crer que tal período tenha sido o primeiro século.”15 HS 155.2
Coleman dá o seguinte testemunho: HS 155.3
“A epístola de Barnabé, que recebe o honrado nome do companheiro de Paulo em seus esforços missionários, é claramente espúria. Ela está repleta de narrativas imaginárias, interpretações místicas e alegóricas do Antigo Testamento e fantasias extravagantes. Os eruditos concordam, de modo geral, que ela não possui autoridade nenhuma.”16 HS 155.4
Como exemplo das coisas absurdas e irracionais que a epístola contém, citamos esta passagem: HS 155.5
“Não comerás a hiena, isto é, mais uma vez, não sejas adúltero, nem alguém que corrompa os outros, nem sejas semelhante a eles. E por quê? Porque essa criatura muda de sexo todos os anos; às vezes, é macho, às vezes, fêmea.”17 HS 155.6
Ao permitir que historiadores favoráveis ao primeiro dia deem o veredito sobre essa questão, estamos autorizados a considerar essa epístola uma farsa. E quem quer que leia o nono capítulo – que nem vale a pena citar – reconhecerá a justiça dessa conclusão. Essa epístola é o único escrito supostamente produzido no primeiro século, além do Novo Testamento, que faz referência ao primeiro dia. Ela não oferece nenhuma evidência da observância do domingo, fato que é aceito até mesmo por Mosheim. HS 155.7
O próximo documento que chama nossa atenção é a carta de Plínio, governador romano da Bitínia, ao imperador Trajano, escrita em torno de 104 d.C. Ele diz o seguinte sobre os cristãos de sua província: HS 155.8
“Eles afirmaram que toda sua culpa ou todo seu erro se resumia no fato de que se reuniam em um certo dia estabelecido, antes do amanhecer, e se dirigiam a Cristo, como a algum deus, por meio de uma oração, comprometendo-se com juramento solene, não a realizar qualquer desígnio mau, mas, sim, a nunca cometer fraude, roubo ou adultério, nunca proferir palavras falsas, nem negar um bem a eles confiado quando chamados a entregá-lo. Depois disso, era costume deles se separar e então se reunir novamente para comer juntos uma refeição inofensiva.”18 HS 155.9
Essa epístola de Plínio certamente não oferece nenhum apoio à observância do domingo. Tal fato é apresentado com franqueza por Coleman. Ele diz o seguinte a respeito do trecho: HS 156.1
“Esta declaração evidencia que esses cristãos guardavam um dia como santo, mas não esclarece se era o último ou o primeiro da semana.”19 HS 156.2
Charles Buck, proeminente autor guardador do primeiro dia, não encontrou nenhuma evidência da observância do primeiro dia nessa epístola, conforme demonstra a tradução indefinida que ele faz. Ele a cita da seguinte maneira: HS 156.3
“Tais pessoas declaram que seu único crime, caso sejam culpadas, consiste nisto: de que em certos dias, eles se reúnem antes do nascer do sol, cantando alternadamente louvores a Cristo como Deus.”20 HS 156.4
Tertuliano, que escreveu em 200 d.C., diz o seguinte sobre essa declaração de Plínio: HS 156.5
“Ele não encontrou nada nos cultos deles, a não ser reuniões, no início da manhã, para cantarem hinos a Cristo e a Deus, e para fazerem, em conjunto, a solene promessa de que, em seu estilo de vida, seriam fiéis a sua religião, proibindo o assassinato, o adultério, a desonestidade e outros crimes.”21 HS 156.6
Tertuliano, sem dúvida, não encontrou nessa declaração nenhuma referência à festa do domingo. HS 156.7
W. B. Taylor fala o seguinte sobre esse dia estabelecido: HS 156.8
“Como o dia de sábado parece ter sido tão comumente observado nessa data quanto o dia do sol (talvez até com mais frequência), é tão provável que esse ‘dia estabelecido’ mencionado por Plínio seja o sétimo dia, quanto que seja o primeiro dia, embora geralmente se suponha que se trata do primeiro dia.”22 HS 156.9
Supor justamente o ponto que deveria ser provado não é novidade nas evidências analisadas até aqui para apoiar a observância do primeiro dia. Embora Mosheim encontre nessa expressão de Plínio um forte apoio ao domingo, ele fala o seguinte acerca da opinião de outro erudito: HS 156.10
“B. Just. Hen. Boehmer realmente gostaria que entendêssemos que esse dia era o mesmo do sábado judaico.”23 HS 156.11
Esse testemunho de Plínio foi escrito alguns anos depois do tempo dos apóstolos. Ele diz respeito a uma igreja que provavelmente fora fundada pelo apóstolo Pedro.24 Sem dúvida, é muito mais provável que essa igreja, apenas 40 anos após a morte de Pedro, continuasse a guardar o quarto mandamento, em vez de observar um novo dia que jamais fora sancionado por autoridade divina. Deve-se admitir que esse testemunho de Plínio nada prova em apoio à observância do domingo, pois não especifica qual dia da semana era guardado. HS 157.1
As epístolas de Inácio de Antioquia, tão citadas a favor da observância do primeiro dia, serão o foco de nossa atenção a seguir. Ele é representado como tendo dito o seguinte: HS 157.2
“Portanto, se eles, que foram criados nessas antigas leis, passaram, não obstante, à novidade de esperança, não mais observando os sábados, mas guardando o dia do Senhor, no qual nossa vida também é erguida por Ele, a quem alguns ainda negam, e por intermédio de Sua morte (mistério este pelo qual fomos levados a crer – razão pela qual esperamos ser considerados discípulos de Jesus Cristo, nosso único mestre), [pergunto:] como então seríamos capazes de viver de maneira diferente Dele, cujos próprios profetas, sendo de fato discípulos, O aceitaram, pelo Espírito, como seu Mestre?”25 HS 157.3
Dois fatos importantes acerca dessa citação são dignos de menção especial: (1) grandes autoridades que defendem o primeiro dia reconhecem que as epístolas de Inácio são espúrias; e as epístolas que alguns desses eruditos excetuam como sendo possivelmente genuínas não incluem essa carta aos magnésios, da qual foi extraída a citação acima, nem dizem nada a respeito da observância do primeiro dia; (2) a epístola aos magnésios não diria nada acerca de dia nenhum se a palavra “dia” não tivesse sido inserida, de maneira fraudulenta, pelo tradutor! A fim de apoiar o primeiro desses dois fatos, segue-se o testemunho do Dr. Killen: HS 157.4
“No século 16, quinze cartas foram apresentadas como sendo uma respeitável antiguidade e oferecidas ao mundo como produções do pastor de Antioquia. Os eruditos se recusaram a aceitá-las nos termos propostos, e, logo de início, oito delas foram reconhecidas como falsificações. No século 17, as outras sete cartas restantes reapareceram mais uma vez da obscuridade, um pouco alteradas, afirmando ser obras de Inácio. De novo, críticos com discernimento se recusaram a reconhecer tais pretensões. Mas a curiosidade foi despertada por essa segunda aparição, e muitos expressaram o ávido desejo de ter acesso às próprias epístolas. Grécia, Síria, Palestina e Egito foram revirados em busca delas, e, por fim, três cartas foram encontradas. A descoberta despertou a felicidade geral. Confessou-se que quatro das epístolas tão tardiamente reconhecidas como genuínas eram apócrifas; e afirmou-se com ousadia que as três então disponíveis estavam acima de toda e qualquer contestação. Mas a verdade se recusa a fazer transigências e severamente repudia os que clamam por sua aprovação. As evidências internas dessas três epístolas dão provas abundantes de que, assim como os três últimos livros de Sibila, elas são apenas os últimos artifícios de uma grande mentira.”26 HS 157.5
O mesmo autor expressa a opinião de Calvino da seguinte forma: HS 158.1
“É grande prova da sagacidade do eminente Calvino o fato de ele, mais de trezentos anos atrás, ter dado uma sentença enérgica de condenação a essas epístolas de Inácio.”27 HS 158.2
Acerca das três epístolas de Inácio ainda consideradas genuínas, o professor C. F. Hudson diz o seguinte: HS 158.3
“Inácio de Antioquia foi martirizado provavelmente em 115 d.C. Das oito epístolas atribuídas a ele, três são genuínas, a saber, as endereçadas a Policarpo, aos efésios e aos romanos.”28 HS 158.4
Nota-se que as três epístolas mencionadas aqui como sendo genuínas não incluem a carta da qual a citação favorável ao domingo é extraída. É também um fato que elas não contêm alusão nenhuma ao domingo. O senhor William Domville, escritor antissabatista, usa as seguintes palavras: HS 158.5
“Todos os que são familiarizados com tais questões estão cientes de que as obras de Inácio foram mais interpoladas e corrompidas do que as de qualquer outro dos antigos pais. Além disso, alguns escritos a ele atribuídos são totalmente espúrios.”29 HS 158.6
Robinson, proeminente escritor batista da Inglaterra, do século 18, exprime a seguinte opinião acerca das epístolas atribuídas a Inácio, Barnabé e outros: HS 158.7
“Se algum dos escritos atribuídos aos chamados “pais apostólicos”, como Inácio, mestre em Antioquia, Policarpo, em Esmirna, Barnabé, que era meio judeu, e Hermas, irmão de Pio, mestre em Roma, for genuíno – algo extremamente duvidoso – eles só provam a piedade e a falta de cultura desses bons homens. Alguns desses escritos são piores – e os melhores dentre eles não é melhor – do que as epístolas religiosas da classe mais inculta dos batistas e quakers da Inglaterra, na época da guerra civil. Tanto Barnabé quanto Hermas mencionam o batismo, mas esses dois livros são fantasias desprezíveis de gênios desvairados e irregulares.”30 HS 158.8
Temos provas suficientes para duvidar das epístolas de Inácio. A citação a favor do domingo não foi extraída de nenhuma das três epístolas ainda consideradas genuínas. Deve-se observar, ainda, que ela nada diria em prol de qualquer dia se não fosse por uma liberdade extraordinária, para não dizer fraude, da qual o tradutor lançou mão ao acrescentar no texto a palavra dia. Kitto descreve tal fato com precisão indiscutível. Sua obra Cyclopedia é muito bem reconhecida entre os eruditos que defendem o primeiro dia. Ele apresenta, da seguinte forma, o original de Inácio com comentários, e em seguida uma tradução: HS 158.9
“Devemos nos atentar a outra passagem [...] que diz respeito ao dia do Senhor, embora certamente não faça nenhuma menção a ele. Ela aparece na epístola de Inácio aos magnésios (cerca de 100 d.C.). O trecho inteiro é admitidamente obscuro e pode estar corrompido. [...] A passagem é esta: HS 159.1
“Εἰ οὖν ὁι ἐν πἀλαιοῖς πράγμασιν ἀναστραφέντες, εἰς καινότητα ἐλπίδος ἥλθον—μηκέτι σαββατίζοντες, ἀλλὰ κατὰ κυριακὴν ζωὴν ζῶντες—(ἐν ἡ καὶ ἡ ζωὴ ἡμῶν ἀνέτειλεν δὶ’ ἀυτοῦ, etc.)”31 HS 159.2
“Muitos comentaristas presumem (não se sabe por qual motivo) que por κυριακὴν [kuriaken – do Senhor] deve-se entender a palavra ἡμέραν [hemeran – dia]. [...] Analisemos, porém, a passagem como ela é. O problema da frase é a falta de um substantivo ao qual ἀυτοῦ possa se referir. Tal problema, longe de ser remediado, fica ainda mais evidente pela introdução de ἡμέρα [hemera, ou seja, ‘dia’]. Se considerarmos que κυριακὴ ζωὴ [kuriaké zoé] significa simplesmente ‘a vida do Senhor’, tendo um significado mais pessoal, com certeza ficamos mais próximos de ter o substantivo para ἀυτοῦ. [...] Assim, como um todo, o significado pode ser o seguinte: HS 159.3
“Se aqueles que viveram sob a velha dispensação entraram em novidade de vida, não mais guardando os sábados, mas vivendo de acordo com a vida de nosso Senhor (na qual, por assim dizer, nossa vida ergueu-se novamente por meio Dele, etc.) [...] HS 159.4
“De acordo com esse ponto de vista, a passagem não se refere de modo algum ao dia do Senhor. Por outro lado, mesmo que se considerasse a hipótese contrária, ela não forneceria nenhuma evidência positiva quanto ao uso antigo da expressão ‘dia do Senhor’ (motivo pelo qual a passagem é com frequência citada), uma vez que a palavra ἡμέρα [hemera – dia] propriamente dita não passa de uma conjectura.”32 HS 159.5
O erudito Morer, clérigo da igreja anglicana, confirma essa declaração de Kitto. Ele traduz Inácio da seguinte forma: HS 159.6
“Portanto, se aqueles que eram bem versados nas obras dos antigos dias vieram à novidade de vida, sem sabatizar, mas vivendo de acordo com a vida dominical [concernente ao Senhor], etc. [...] O exemplar de Médici, o melhor e mais semelhante ao de Eusébio, não deixa dúvidas, pois o termo ζωὴν [zoen] é usado, e determina que a palavra dominical [do Senhor] se refere à pessoa de Cristo, não ao dia de Sua ressurreição.”33 HS 159.7
O senhor William Domville comenta o seguinte sobre o assunto: HS 159.8
“Julgando pelo teor da epístola em si, a tradução literal da passagem em discussão, a saber, ‘não mais observando sábados, mas vivendo segundo a vida do Senhor’, parece exprimir seu significado verdadeiro e apropriado. Se assim for, Inácio, a quem Gurney34 elenca como testemunha concreta da observância do dia do Senhor no início do segundo século, fracassa em provar tal fato. Um exame completo de seu testemunho deixa transparecer que ele nem sequer menciona o dia do Senhor, nem faz alusão, de nenhuma maneira, à observância religiosa desse dia, seja por meio dessa expressão ou de qualquer outra.”35 HS 159.9
Fica claro, portanto, que essa famosa citação não faz nenhuma referência ao primeiro dia da semana e não fornece evidências de que, na época de Inácio, o domingo fosse conhecido pelo título de “dia do Senhor”.36 As evidências agora se encontram diante do leitor, que deve decidir se Mosheim ou Neander falaram em conformidade com os fatos sobre esse assunto. Parece então que, no Novo Testamento e nos escritores não inspirados do período mencionado, não há absolutamente nada que apoie a forte declaração em favor do domingo feita por Mosheim. Chegando ao quarto século, encontramos uma citação dele que, em essência, modifica aquilo que ele disse aqui. Das epístolas atribuídas a Barnabé, Plínio e Inácio, descobrimos que a primeira é uma farsa, a segunda fala de um dia determinado sem definir qual é, e a terceira, que provavelmente é um documento espúrio, nada teria dito sobre o domingo se os defensores da santidade desse dia não houvessem acrescentado a palavra dia ao documento! Não podemos evitar a conclusão de que Mosheim falou sobre o assunto como doutor em divindade, mas não como historiador. E com a mais firme convicção de que dizemos a verdade, afirmamos junto com Neander: “A festa do domingo sempre foi uma mera ordenança humana”. HS 160.1