Atos Dos Apóstolos

42/58

Capítulo 42 — A Viagem e o Naufrágio

Paulo estava afinal a caminho de Roma. “E, como se determinou que havíamos de navegar para a Itália”, escreve Lucas, “entregaram Paulo, e alguns outros presos, a um centurião por nome Júlio, da coorte augusta. E, embarcando nós em um navio adramitino, partimos navegando pelos lugares da costa da Ásia, estando conosco Aristarco, macedônio, de Tessalônica” (At 27:1, 2). AA 228.1

No primeiro século da era cristã, as viagens por mar eram feitas com peculiares dificuldades e perigos. Os marinheiros faziam a sua rota em grande parte orientando-se pela posição do Sol e das estrelas; e quando estes corpos celestes não apareciam, e havia indício de tempestade, os proprietários dos navios temiam aventurar-se em pleno mar. Durante uma parte do ano era quase impossível a navegação sem riscos. AA 228.2

O apóstolo Paulo era agora chamado a suportar as difíceis experiências que lhe poderiam tocar como um prisioneiro em cadeias durante a longa e tediosa viagem para a Itália. Uma circunstância suavizou grandemente as dificuldades de sua vida - foi-lhe permitida a companhia de Lucas e Aristarco. Em sua carta aos colossenses, referiu-se ele mais tarde ao último como seu “companheiro de prisão” (Cl 4:10); mas foi por vontade própria que Aristarco partilhou da prisão de Paulo, a fim de poder confortá-lo em suas aflições. AA 228.3

A viagem começou favoravelmente. No dia seguinte lançaram âncora no porto de Sidom. Aqui Júlio, o centurião, “tratando Paulo humanamente”, e sendo informado de que neste lugar havia cristãos, “lhe permitiu ir ver os amigos, para que cuidassem dele” (At 27:3). Esta permissão foi grandemente apreciada pelo apóstolo, que estava com a saúde debilitada. AA 228.4

Havendo deixado Sidom, o navio encontrou ventos contrários; e tendo-se desviado de uma rota direta, seu progresso foi lento. Em Mirra, na província de Lícia, o centurião encontrou um grande navio de Alexandria, que viajava para a costa da Itália, e para este navio transferiu imediatamente os prisioneiros. Mas os ventos eram ainda contrários, e o progresso do navio foi difícil. Lucas escreve: “E, como por muitos dias navegássemos vagarosamente, havendo chegado apenas defronte a Cnido, não nos permitindo o vento ir mais adiante, navegamos abaixo de Creta, junto de Salmone. E, costeando-a dificilmente, chegamos a um lugar chamado Bons Portos.” AA 228.5

Em Bons Portos foram forçados a ficar por algum tempo, esperando vento favorável. O inverno estava-se aproximando rapidamente, “sendo já perigosa a navegação”; e os que tinham a responsabilidade do navio tiveram que desistir de alcançar seu destino antes que a época favorável para a navegação marítima se encerrasse naquele ano. A única questão a ser decidida agora era se deviam permanecer em Bons Portos ou tentar alcançar um lugar mais favorável para invernar. AA 228.6

Esta questão foi calorosamente discutida, sendo afinal referida pelo centurião a Paulo, o qual conquistara o respeito tanto dos soldados como da tripulação. Sem hesitação o apóstolo aconselhou ficarem onde estavam. “Vejo”, disse ele, “que a navegação há de ser incômoda, e com muito dano, não só para o navio e carga, mas também para as nossas vidas.” Mas “o piloto” e o “mestre” do navio e a maioria dos passageiros e toda a tripulação não quiseram aceitar este conselho. Como aquele porto em que ancoraram “não era cômodo para invernar, os mais deles foram de parecer que se partisse dali para ver se podiam chegar a Fênix, que é um porto de Creta que olha para a banda do vento da África e do Coro, e invernar ali” (At 27:8-12). AA 229.1

O centurião decidiu seguir o discernimento da maioria. De comum acordo, “soprando o sul brandamente”, deixaram Bons Portos na esperança de que alcançariam logo o desejado porto. “Mas não muito depois deu nela um pé-de-vento”; “e sendo o navio arrebatado” (At 27:13-15), não podiam navegar contra o vento. AA 229.2

Impulsionado pela tempestade, o navio se aproximou da pequena ilha de Clauda, e neste abrigo os tripulantes se prepararam para o pior. O bote salva-vidas, seu único meio de escape no caso do navio afundar, estava amarrado, e sujeito a ser feito em pedaços a cada momento. Seu primeiro trabalho foi içar este bote para bordo. Todas as precauções possíveis foram então tomadas para fortificar o navio e prepará-lo para resistir à tempestade. A exígua proteção oferecida pela pequena ilha não durou muito, e logo estavam de novo expostos a toda a violência da tempestade. AA 229.3

Toda a noite a tempestade rugiu, e não obstante as precauções tomadas, o navio fazia água. “No dia seguinte aliviaram o navio.” De novo veio a noite, mas o vento não amainava. O navio batido pela tempestade, com os mastros partidos e as velas rotas, era pela fúria do vento atirado de um para outro lado. A cada momento parecia que o madeiramento dos costados, que não deixava de ranger, se iria abrir, tal a veemência dos abalos e estremecimentos produzidos pelos choques das ondas. A invasão da água mais aumentava, e a tripulação e passageiros trabalhavam continuamente nas bombas. Não havia um momento de repouso para ninguém a bordo. “E ao terceiro dia”, escreve Lucas, “nós mesmos, com as nossas próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio.” “E não aparecendo, havia já muitos dias, nem sol nem estrelas, e caindo sobre nós uma não pequena tempestade, fugiu-nos toda a esperança de nos salvarmos” (At 27:18-20). AA 229.4

Durante catorze dias flutuaram sob um céu sem sol e sem estrelas. O apóstolo, embora sofrendo ele próprio fisicamente, tinha palavras de esperança para o momento mais crítico, uma mão auxiliadora em cada emergência. Agarrou-se pela fé ao braço do Poder Infinito, e seu coração se apoiava em Deus. Não temia por si; sabia que Deus o preservaria para testificar em Roma da verdade de Cristo. Porém seu coração se comovia de piedade pelas pobres almas que lhe estavam ao redor, pecadoras, degradadas e não preparadas para morrer. Ao suplicar ardentemente a Deus para lhes poupar a vida, foi-lhe revelado que sua oração fora atendida. AA 229.5

Aproveitando a vantagem de uma trégua na tempestade, Paulo ficou na coberta, e levantando a voz disse: “Fora, na verdade, razoável, ó varões, ter-me ouvido a mim, e não partir de Creta, e assim evitariam este incômodo e esta perdição. Mas agora vos admoesto a que tenhais bom ânimo, porque não se perderá a vida de nenhum de vós, mas somente o navio. Porque esta mesma noite o anjo de Deus, de quem eu sou, e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas; importa que sejas apresentado a César, e eis que Deus te deu todos quantos navegam contigo. Portanto, ó varões, tende bom ânimo; porque creio em Deus, que há de acontecer assim como a mim me foi dito. É contudo necessário irmos dar numa ilha” (At 27:21-26). AA 229.6

A essas palavras, reviveu a esperança. Passageiros e tripulantes se ergueram de sua apatia. Havia muito, ainda, a ser feito, e cada esforço e capacidade deviam ser exercitados para evitar a destruição. AA 230.1

Foi na décima quarta noite de arremesso sobre as ondas negras e encapeladas que “lá pela meia-noite”, ouvindo som característico, “suspeitaram os marinheiros que estavam próximos de alguma terra. E, lançando prumo, acharam vinte braças; e, passando um pouco mais adiante, tornando a lançar o prumo, acharam quinze braças. E, temendo”, escreve Lucas, “ir dar em alguns rochedos, lançaram da popa quatro âncoras, desejando que viesse o dia” (At 27:27-29). AA 230.2

Ao raiar do dia os contornos da costa tempestuosa eram vagamente visíveis, mas não se viam quaisquer sinais de terra familiar. Tão sombria era a perspectiva que os marinheiros pagãos, perdendo toda a coragem, procuravam “fugir do navio”, e fazendo preparativos dissimulados para “lançar as âncoras pela proa”, tinha já lançado o bote salva-vidas, quando Paulo, percebendo seu baixo intento, disse ao centurião e aos soldados: “Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos.” Os soldados imediatamente “cortaram os cabos do batel, e o deixaram cair” no mar. AA 230.3

A hora mais crítica estava ainda diante deles. De novo o apóstolo disse palavras de encorajamento, e exortou a todos, soldados e passageiros, para que tomassem algum alimento, dizendo: “E já hoje o décimo quarto dia que esperais, e permaneceis sem comer, não havendo provado nada. Portanto, exorto-vos a que comais alguma coisa, pois é para a vossa saúde; porque nem um cabelo cairá da cabeça de qualquer de vós” (At 27:30-34). AA 230.4

“E, havendo dito isto, tomando o pão, deu graças a Deus na presença de todos; e, partindo-o, começou a comer.” Então aquele exausto e desencorajado grupo de duzentas e setenta e cinco almas que, não fora Paulo, ter-se-ia desesperado, uniu-se ao apóstolo em partilhar do “alimento. E, refeitos com a comida, aliviaram o navio, lançando o trigo ao mar” (At 27:35-38). AA 230.5

A luz do dia tinha agora rompido plenamente, mas eles nada podiam ver que lhes determinasse o lugar em que estavam. “Enxergaram porém uma enseada que tinha praia, e consultaram-se sobre se deveriam encalhar nela o navio. E, levantando as âncoras, deixaram-no ir ao mar, largando também as amarras do leme; e, alçando a vela maior ao vento, dirigiram-se para a praia. Dando, porém, num lugar de dois mares, encalharam ali o navio; e, fixa a proa, ficou imóvel, mas a popa abria-se com a força das ondas” (At 27:39-41). AA 230.6

Paulo e os outros prisioneiros estavam agora ameaçados por um perigo maior que o naufrágio. Os soldados viram que enquanto estivessem procurando alcançar a terra, ser-lhes-ia impossível vigiar os prisioneiros. Cada homem teria que fazer todo o possível para salvar-se. Entretanto, se algum dos prisioneiros faltasse, perderia a vida o responsável por eles. Por isso os soldados desejavam matar todos os prisioneiros. A lei romana sancionava essa cruel prática, e o plano teria sido imediatamente executado, não fosse aquele a quem todos muito deviam. Júlio, o centurião, sabia que Paulo tinha sido o instrumento em salvar a vida de todos a bordo; e, além disso, convencido de que o Senhor estava com ele, temeu fazer-lhe mal. Portanto, “mandou que os que pudessem nadar se lançassem primeiro ao mar, e se salvassem em terra; e os demais, uns em tábuas e outros em coisas do navio. E assim aconteceu que todos chegaram à terra, a salvo” (At 27:43, 44). Quando se verificou a lista, nenhum faltava. AA 230.7

Os náufragos foram bondosamente recebidos pelos bárbaros de Malta. “Acendendo uma grande fogueira”, escreve Lucas, “nos recolheram a todos por causa da chuva que caía, e por causa do frio.” Paulo estava entre os que se mostravam ativos em prover o conforto dos outros. Tendo “ajuntado uma quantidade de vides, e pondo-as no fogo, uma víbora, fugindo do calor, lhe acometeu a mão”. Os circunstantes ficaram tomados de horror, e vendo por suas correntes que Paulo era um prisioneiro, AA 231.1

“diziam uns aos outros: Certamente este homem é homicida, visto como, escapando do mar, a justiça não o deixa viver”. Mas Paulo sacudiu a cobra no fogo, e nenhum mal sentiu. Sabendo a natureza venenosa da víbora, as pessoas olhavam para ele, esperando vê-lo entrar num momento em terrível agonia. “Mas tendo esperado já muito e vendo que nenhum incômodo lhe sobrevinha, mudando de parecer, diziam que era um deus” (At 28:2-6). AA 231.2

Durante os três meses que o pessoal do navio permaneceu em Malta, Paulo e seus companheiros de trabalho aproveitaram muitas oportunidades de pregar o evangelho. De modo notável operou o Senhor por meio deles. Por amor de Paulo, toda a tripulação do navio foi tratada com grande bondade; todas as suas necessidades foram supridas e, ao deixarem Malta, foram liberalmente providos de todo o necessário para a viagem. Os principais incidentes desta permanência ali são assim descritos por Lucas: AA 231.3

“E ali, próximo daquele mesmo lugar, havia umas herdades que pertenciam ao principal da ilha, por nome Públio, o qual nos recebeu e hospedou benignamente por três dias. E aconteceu estar de cama enfermo de febres e disenteria o pai de Públio, que Paulo foi ver e, havendo orado, pôs as mãos sobre ele e o curou. Feito pois isto, vieram também ter com ele os demais que na ilha tinham enfermidades, e sararam. Os quais nos distinguiram também com muitas honras; e, havendo de navegar, nos proveram das coisas necessárias” (At 28:7-10). AA 231.4