O Grande Conflito (condensado)

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Capítulo 6 — Dois heróis enfrentam a morte

Já no século nono a Bíblia achava-se traduzida e o culto público era celebrado na língua do povo, na Boêmia. Mas Gregório VII intentava escravizar o povo, e uma bula foi expedida proibindo que o culto público fosse dirigido na língua boêmia. O papa declarava ser “agradável ao Onipotente que Seu culto fosse celebrado em língua desconhecida”.1. Mas o Céu havia providenciado meios para a preservação da igreja. Muitos valdenses e albigenses, expulsos de seus lares pela perseguição, vieram à Boêmia. Trabalharam zelosamente em segredo. Assim foi preservada a verdadeira fé. GCC 45.1

Antes dos dias de Huss, houve na Boêmia homens que se levantaram para condenar a corrupção na igreja. Suscitaram-se os temores da hierarquia e iniciou-se a perseguição contra o evangelho. Depois de algum tempo decretou-se que todos os que se afastassem do culto romano deviam ser queimados. Mas os cristãos olhavam à frente, para a vitória de sua causa. Um deles declarou ao morrer: “Levantar-se-á um dentre o povo comum, sem espada nem autoridade, e contra ele não poderão prevalecer.”2. Já se erguia alguém, cujo testemunho contra Roma abalaria as nações. GCC 45.2

João Huss era de humilde nascimento e cedo ficou órfão pela morte do pai. Sua piedosa mãe, considerando a educação e o temor de Deus como a mais valiosa das posses, procurou assegurar esta herança ao filho. Huss estudou na escola da província, passando depois para a Universidade de Praga, onde teve admissão como estudante carente. GCC 45.3

Na universidade, Huss logo se distinguiu pelo rápido progresso. Seus modos afáveis e simpáticos lhe conquistaram estima geral. Era adepto sincero da Igreja de Roma e fervorosamente buscava as bênçãos espirituais que ela professava conferir. Depois de completar o curso superior, ingressou no sacerdócio. Atingindo rapidamente a eminência, foi logo chamado à corte do rei. Tornou-se também professor e mais tarde reitor da universidade. O humilde estudante, que de favor recebera educação, tornou-se o orgulho de seu país e seu nome teve fama em toda a Europa. GCC 45.4

Jerônimo, que mais tarde se associou a Huss, trouxera consigo da Inglaterra os escritos de Wycliffe. A rainha da Inglaterra, convertida aos ensinos de Wycliffe, era uma princesa boêmia. Por sua influência as obras do reformador foram amplamente divulgadas em seu país natal. Huss inclinava-se a considerar favoravelmente as reformas advogadas. Conquanto não o soubesse, entrara já num caminho que o levaria para longe de Roma. GCC 45.5

Dois quadros impressionam Huss — Por esse tempo chegaram a Praga dois estrangeiros da Inglaterra, homens de saber, que tinham recebido a luz e teriam vindo espalhá-la naquela terra distante. Foram logo silenciados, mas não estando dispostos a abandonar seu propósito, recorreram a outras medidas. Sendo artistas, bem como pregadores, pintaram em local franqueado ao público dois quadros. Um representava a entrada de Cristo em Jerusalém, “humilde, montado em jumento” (Mateus 21:5) e seguido de Seus discípulos, descalços e com trajes gastos pelas viagens. O outro estampava uma procissão pontifical — o papa em suas ricas vestes e tríplice coroa, montado em cavalo magnificamente adornado, precedido de trombeteiros e seguido pelos cardeais e prelados em deslumbrante pompa. GCC 46.1

Multidões vieram contemplar os desenhos. Ninguém deixara de compreender a moral. Houve grande comoção em Praga, e os estrangeiros acharam necessário partir. Mas os quadros produziram profunda impressão em Huss e levaram-no a estudar mais profundamente a Bíblia e os escritos de Wycliffe. GCC 46.2

Embora não estivesse preparado para aceitar todas as reformas advogadas por Wycliffe, Huss viu o verdadeiro caráter do papado, e denunciou o orgulho, a ambição e a corrupção da hierarquia. GCC 46.3

Praga é interditada — Notícias foram levadas a Roma e Huss foi logo chamado a comparecer perante o papa. Obedecer seria expor-se à morte certa. O rei e a rainha da Boêmia, a universidade, membros da nobreza e oficiais do governo, uniram-se num apelo ao pontífice para que fosse permitido a Huss permanecer em Praga e responder por delegação. Em vez de atender ao pedido, o papa procedeu ao processo e condenação de Huss, declarando então achar-se interditada a cidade de Praga. GCC 46.4

Naquela época esta sentença despertava alarma geral. O povo considerava o papa como representante de Deus, possuindo as chaves do Céu e do inferno e possuindo poder para invocar juízos. Acreditava-se que até que o papa fosse servido remover a excomunhão, os mortos eram excluídos das moradas das bem-aventuranças. Todos os serviços religiosos foram suspensos. As igrejas foram fechadas. Celebravam-se os casamentos nos pátios das igrejas. Os mortos eram sepultados sem ritos em fossos ou no campo. GCC 46.5

A cidade de Praga encheu-se de tumulto. Uma classe numerosa denunciou Huss e exigiu que ele fosse entregue a Roma. Para acalmar a tempestade, o reformador retirou-se por algum tempo à sua aldeia natal. Ele não cessou seus labores, mas viajou pelos territórios circunjacentes, pregando a multidões ávidas. Quando serenou a excitação em Praga, Huss retornou a fim de continuar a pregação da Palavra de Deus. Seus inimigos eram poderosos, mas a rainha e muitos nobres eram seus amigos, e o povo em grande parte o apoiava. GCC 46.6

Huss estivera sozinho em seus labores. Agora Jerônimo uniu-se à obra de Reforma. Daí em diante os dois estiveram ligados durante toda a vida, e na morte não deveriam ser separados. Quando às qualidades que constituem a verdadeira força de caráter, Huss era o maior. Jerônimo, com verdadeira humildade, se apercebia do valor do outro e cedia aos seus conselhos. Sob o trabalho unido de ambos, a Reforma estendeu-se rapidamente. GCC 47.1

Deus permitiu que grande luz resplandecesse no espírito daqueles homens escolhidos, revelando-lhes muitos dos erros de Roma; mas eles não receberam toda a luz que devia ser dada ao mundo. Deus estava guiando as pessoas para fora das trevas do romanismo, e Ele os guiou passo a passo, conforme o podiam suportar. Se fosse apresentada como o completo fulgor do Sol do meio-dia para os que durante muito tempo permaneceram em trevas, teria feito com que se desviassem. Portanto Ele a revelou pouco a pouco, à medida que podia ser recebida pelo povo. GCC 47.2

Persistia o cisma na igreja. Três papas contendiam agora pela supremacia. Sua luta encheu a cristandade de tumulto. Não contentes em lançar anátemas, recorriam à compra de armas e à contratação de soldados. É claro que necessitavam de dinheiro e, para arranjá-lo, os dons, ofícios e bênçãos da igreja eram oferecidos à venda. GCC 47.3

Com crescente audácia, Huss fulminava as abominações que eram toleradas em nome da religião. O povo acusava abertamente a Roma como causa das misérias que oprimiam a cristandade. GCC 47.4

Novamente a cidade de Praga parecia à borda de um conflito sangrento. Como em eras anteriores, o servo de Deus foi acusado de ser o “perturbador de Israel”. 1 Reis 18:17. A cidade foi novamente posta sob interdito, e Huss retirou-se para a sua aldeia natal. Ele deveria falar a um cenário mais amplo, a toda a cristandade, antes de depor a vida como testemunha da verdade. GCC 47.5

Um concílio geral foi convocado a reunir-se na cidade de Constança [sudoeste da Alemanha], convocado, a pedido do imperador Sigismundo, por um dos três papas rivais, João XXIII. O papa João, cujo caráter e política mal poderiam suportar exame, não ousou opor-se à vontade de Sigismundo. O principal objetivo a ser cumprido era apaziguar o cisma da igreja e desarraigar a “heresia”. Os dois antipapas foram chamados a comparecer, bem como João Huss. Os primeiros foram representados por seus delegados. O Papa João compareceu com muitos pressentimentos, temendo ser chamado a prestar contas pelos vícios que haviam infelicitado a tiara, bem como pelos crimes que a haviam garantido. Não obstante, fez sua entrada na cidade de Constança com grande pompa, acompanhado de eclesiásticos e um séquito de cortesões. Vinha sob um pálio de ouro, carregado por quatro dos principais magistrados. A hóstia era levada diante dele, e as ricas vestes dos cardeais e nobres ofereciam um espetáculo imponente. GCC 47.6

Enquanto isto outro viajante se aproximava de Constança. Huss despedira-se dos amigos como se jamais devesse encontrá-los de novo, pressentindo que esta viagem o conduziria à fogueira. Havia recebido salvo-conduto do rei da Boêmia e outro do imperador Sigismundo. Contudo, fez seus planos encarando a possibilidade de morrer. GCC 48.1

Salvo-conduto do rei — Numa carta dirigida aos amigos, disse ele: “Meus irmãos, [...] parto com um salvo-conduto do rei, ao encontro de meus numerosos e mortais inimigos. [...] Jesus Cristo sofreu por Seus bem-amados; deveríamos, pois, estranhar que Ele nos tenha deixado Seu exemplo? [...] Portanto, amados, se minha morte deve contribuir para a Sua glória, orai para que ela venha rapidamente, e para que Ele possa habilitar-me a suportar com lealdade todas as minhas calamidades. [...] Oremos a Deus [...] para que eu não suprima um til da verdade do evangelho, a fim de deixar a meus irmãos um excelente exemplo a seguir.”3. GCC 48.2

Noutra carta, Huss falou com humildade de seus próprios erros, acusando-se de “ter sentido prazer em usar ricas decorações e haver despendido horas em ocupações frívolas”. Acrescentou, então: “Que a glória de Deus e a salvação das pessoas ocupem tua mente, e não a posse de benefícios e bens. Acautela-te de adornar tua casa mais do que tua vida; e, acima de tudo, dá teu cuidado ao edifício espiritual. Sê piedoso e humilde para com os pobres, e não consumas teus haveres em festas.”4. GCC 48.3

Em Constança, Huss teve assegurada plena liberdade. Ao salvo-conduto do imperador acrescentou-se uma garantia pessoal de proteção por parte do papa. Mas, com violação destas repetidas declarações, em pouco tempo o reformador foi preso por ordem do papa e dos cardeais, e lançado em asquerosa masmorra. Mais tarde foi transferido para um castelo forte além do Reno e ali conservado prisioneiro. O papa foi logo depois entregue à mesma prisão.5. Provara-se perante o concílio ser ele réu dos mais baixos crimes, além de assassínio, simonia e adultério — “pecados que não convém mencionar”. Foi ele finalmente despojado da tiara. Os antipapas também foram depostos, sendo escolhido um novo pontífice. GCC 48.4

Se bem que o próprio papa tivesse sido acusado de maiores crimes que os de que Huss denunciara os padres, o mesmo concílio que rebaixou o pontífice tratou também de esmagar o reformador. O aprisionamento de Huss despertou grande indignação na Boêmia. O imperador, a quem repugnava permitir que fosse violado um salvo-conduto, opôs-se ao processo que lhe era movido. Mas os inimigos do reformador apresentaram argumentos a fim de provar que “não se deve dispensar fé aos hereges, tampouco a pessoas suspeitas de heresia, ainda que estas estejam munidas de salvo-conduto do imperador e reis”.6. GCC 48.5

Enfraquecido pela enfermidade — o ar úmido e impuro do calabouço lhe acarretara uma febre que quase o levou à sepultura — Huss foi finalmente conduzido perante o concílio. Carregado de cadeias, ficou em pé na presença do imperador, cuja honra e boa fé tinham sido empenhadas em defendê-lo. Manteve firmemente a verdade e proferiu solene protesto contra as corrupções da hierarquia. Quando se lhe exigiu optar entre abjurar suas doutrinas ou sofrer a morte, aceitou a sorte de mártir. GCC 49.1

A graça de Deus o susteve. Durante as semanas de sofrimento por que passou antes da sentença final, a paz celestial encheu seu coração. “Escrevo esta carta”, dizia a um amigo, “na prisão e com as mãos algemadas, esperando a sentença de morte para amanhã [...] Quando, com o auxílio de Jesus Cristo, de novo nos encontrarmos na deliciosa paz da vida futura, sabereis quão misericordioso Deus Se mostrou para comigo, quão eficazmente me sustentou em meio de tentações e provas.”7. GCC 49.2

Antevisão do triunfo — Na masmorra ele previu o triunfo que teria a verdadeira fé. Em seu sonho viu o papa e seus bispos apagando as pinturas de Cristo que ele desenhara nas paredes da capela de Praga. “Esta visão angustiou-o; mas no dia seguinte viu muitos pintores ocupados na restauração dessas figuras, em maior número e em cores mais vivas. [...] Os pintores [...] rodeados de imensa multidão, exclamavam: ‘Venham agora os papas e os bispos; nunca mais as apagarão!’” Disse o reformador: “A imagem de Cristo nunca se apagará. Quiseram destruí-la, mas será pintada de novo em todos os corações por pregadores muito melhores do que eu.”8. GCC 49.3

Pela última vez Huss foi levado perante o concílio, uma vasta e brilhante assembléia — o imperador, os príncipes do império, delegados reais, cardeais, bispos, sacerdotes e uma vasta multidão. GCC 49.4

Chamado à decisão final, Huss declarou recusar-se a abjurar. Fixando o olhar penetrante no imperador cuja palavra empenhada fora tão vergonhosamente violada, declarou: “Decidi-me, de espontânea vontade, comparecer perante este concílio, sob a pública proteção e fé do imperador aqui presente.”9. Intenso rubor avermelhou o rosto de Sigismundo quando o olhar de todos convergiu para ele. GCC 49.5

Pronunciada a sentença, iniciou-se a cerimônia de degradação. Sendo de novo exortado a retratar-se, Huss replicou, volvendo-se para o povo: “Com que cara, pois, contemplaria eu os Céus? Como olharia para as multidões de homens a quem preguei o evangelho puro? Não! aprecio a sua salvação mais do que este pobre corpo, ora destinado à morte.” As vestes sacerdotais foram removidas uma a uma, e cada bispo pronunciava uma maldição ao realizar sua parte na cerimônia. Finalmente, “puseram-lhe sobre a cabeça uma carapuça ou mitra de papel em forma piramidal, em que estavam desenhadas horrendas figuras de demônios, com a palavra ‘Arqui-herege’ bem visível na frente. ‘Com muito prazer’, disse Huss, ‘levarei sobre a cabeça esta coroa de ignomínia por Teu amor, ó Jesus, que por mim levaste uma coroa de espinhos.’”10. GCC 49.6

Huss morre na fogueira — Foi então levado para o lugar da execução. Imenso séquito acompanhou-o. Quando tudo estava pronto para ser aceso o fogo, uma vez mais foi ele exortado a renunciar a seus erros. “A que erros”, disse Huss, “renunciarei eu? Não me julgo culpado de nenhum. Invoco a Deus para testemunhar que tudo que escrevi e preguei foi feito com o fim de livrar pessoas do pecado e perdição; e, portanto, muito alegremente confirmarei com meu sangue a verdade que escrevi e preguei.”11. GCC 50.1

Quando as chamas começaram a envolvê-lo, pôs-se a cantar: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”, e assim prosseguiu até que sua voz silenciou para sempre. Um zeloso adepto de Roma, que testemunhou a morte de Huss e a de Jerônimo, que ocorreu pouco depois, disse: “Prepararam-se para o fogo como se fosse para uma festa de casamento. Não soltaram nenhum grito de dor. Ao levantarem-se as chamas, começaram a cantar hinos, e mal podia a veemência do fogo fazer silenciar o seu canto.”12. GCC 50.2

Depois de consumido o corpo de Huss, suas cinzas foram ajuntadas e lançadas no Reno, e assim foram levadas para além do oceano, e daí espalhadas a todos os países da Terra. Em terras ainda desconhecidas elas produziriam fruto abundante em testemunho da verdade. A voz que falara no recinto do concílio em Constança despertou ecos que seriam ouvidos através de todas as eras vindouras. Seu exemplo animaria multidões a permanecerem fiéis em face da tortura e morte. Sua execução patenteou ao mundo inteiro a pérfida crueldade de Roma. Os inimigos da verdade promoveram a causa que em vão pensavam destruir. GCC 50.3

Contudo, o sangue de mais uma testemunha deveria testificar da verdade. Jerônimo havia exortado Huss a que tivesse coragem e firmeza, declarando que se este caísse em algum perigo, ele próprio acudiria em seu auxílio. Ouvindo acerca da prisão do reformador, o fiel discípulo imediatamente se preparou para cumprir a promessa. Sem salvo-conduto, partiu para Constança. Ali chegando, convenceu-se de que apenas se havia exposto ao perigo, sem nada poder fazer em favor de Huss. Fugiu da cidade, mas foi preso e conduzido de volta em ferros. Ao seu primeiro aparecimento perante o concílio, suas tentativas de responder foram defrontadas com clamores: “Às chamas! Que vá às chamas!”13. Foi lançado numa masmorra e alimentado a pão e água. As crueldades da prisão causaram-lhe uma enfermidade que lhe pôs em perigo a vida; seus inimigos, receosos de que ele pudesse escapar, trataram-no com menos severidade, posto que permanecesse na prisão durante um ano. GCC 50.4

Jerônimo se submete ao Concílio — A violação do salvo-conduto de Huss suscitara uma tempestade de indignação. O concílio decidiu, em vez de queimar Jerônimo, obrigá-lo a retratar-se. Ofereceu-lhe a alternativa de abjurar ou morrer na fogueira. Enfraquecido pela moléstia, pelos rigores do cárcere e pela tortura da ansiedade e apreensão, separado dos amigos e desanimado pela morte de Huss, a fortaleza de Jerônimo cedeu. Comprometeu-se a aderir à fé católica e aceitou o voto do concílio ao este condenar as doutrinas de Wycliffe e de Huss, exceção feita, contudo, às “sagradas verdades” que eles haviam ensinado.14. GCC 50.5

Mas na solidão do calabouço ele viu mais claramente o que havia feito. Pensou na coragem e fidelidade de Huss e, em contraste, refletiu em sua própria negação da verdade. Pensou no divino Mestre que por amor a ele suportara a morte na cruz. Antes de sua retratação encontrara conforto, em todos os sofrimentos, na certeza do favor de Deus. Agora, porém, o remorso e a dúvida lhe torturavam o espírito. Sabia que outras retratações ainda teriam de ser feitas antes que pudesse estar em paz com Roma. O caminho em que estava entrando apenas poderia terminar em completa apostasia. GCC 51.1

Jerônimo se arrepende e adquire nova coragem — Logo foi ele novamente levado perante o concílio. Sua submissão não satisfizera aos juízes. Apenas renunciando sem reservas à verdade poderia Jerônimo preservar a vida. Decidira-se, porém, a confessar sua fé e seguir às chamas seu irmão mártir. GCC 51.2

Renunciou à abjuração anterior e, como moribundo, exigiu solenemente a oportunidade de apresentar sua defesa. Os prelados insistiram em que ele meramente afirmasse ou negasse as acusações lançadas contra sua pessoa. Jerônimo protestou contra tal crueldade e injustiça: “Conservastes-me encerrado durante trezentos e quarenta dias numa horrível prisão”, disse ele; “trazeis-me depois diante de vós e, dando ouvidos a meus inimigos mortais, recusais-vos a ouvir-me [...] Tende cuidado em não pecar contra a justiça. Quanto a mim, sou apenas um fraco mortal; minha vida não tem senão pouca importância; e quando vos exorto a não lavrar uma sentença injusta, falo menos por mim do que por vós.”15. GCC 51.3

Seu pedido foi finalmente atendido. Na presença dos juízes, Jerônimo ajoelhou-se e pediu que o divino Espírito lhe dirigisse os pensamentos, de modo que nada falasse contrário à verdade ou indigno de seu Mestre. Para ele neste dia cumpriu-se a promessa: “Quando vos entregarem, não cuideis em como, ou o que haveis de falar [...] visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós”. Mateus 10:19, 20. GCC 51.4

Jerônimo havia estado durante um ano inteiro numa masmorra, impossibilitado de ler ou mesmo ver. No entanto, seus argumentos foram apresentados com tanta clareza e força como se houvesse tido oportunidade tranqüila para o estudo. Indicou aos ouvintes a longa série de homens santos que haviam sido condenados por juízes injustos. Em quase todas as gerações houve aqueles que procuraram elevar o povo de seu tempo, e que foram rejeitados. O próprio Cristo foi condenado como malfeitor, por um tribunal injusto. GCC 51.5

Jerônimo declarou agora o seu arrependimento e deu testemunho da inocência e santidade do mártir Huss. “Conheci-o desde a meninice”, disse ele. “Foi um homem excelente, justo e santo; foi condenado, a despeito de sua inocência. [...] Estou pronto para morrer. Não recuarei diante dos tormentos que me estão preparados por meus inimigos e falsas testemunhas, que um dia terão de prestar contas de suas imposturas perante o grande Deus, a quem nada pode enganar.” GCC 52.1

Jerônimo prosseguiu: “De todos os pecados que tenho cometido desde minha juventude, nenhum pesa tão gravemente em meu espírito e me causa tão pungente remorso, como aquele que cometi neste lugar fatídico, quando aprovei a iníqua sentença dada contra Wycliffe e contra o santo mártir, João Huss, meu mestre e amigo. Sim! confesso-o de todo o coração e declaro com horror, que desgraçadamente fraquejei quando, por medo da morte, condenei suas doutrinas. Portanto suplico [...] a Deus todo-poderoso, Se digne perdoar meus pecados, e em particular este, o mais hediondo de todos.” GCC 52.2

Apontando para os juízes, disse com firmeza: “Condenastes Wycliffe e João Huss. [...] As coisas que eles afirmaram, e que são irrefutáveis, eu também as entendo e declaro como eles.” GCC 52.3

Suas palavras foram interrompidas. Os prelados, trêmulos de cólera, exclamaram: “Que necessidade há de mais provas? Contemplamos com nossos próprios olhos o mais obstinado dos hereges!” GCC 52.4

Sem se abalar com a tempestade, Jerônimo exclamou: “Ora! supondes que receio morrer? Conservastes-me durante um ano inteiro em horrível masmorra, mais horrenda que a própria morte. [...] Não posso senão exprimir meu espanto com tão grande barbaridade para com um cristão.”16. GCC 52.5

Destinado à prisão e morte — De novo irrompeu a tempestade de cólera, e Jerônimo foi levado precipitadamente à prisão. Havia, contudo, alguns nos quais suas palavras produziram profunda impressão, e que desejavam salvar-lhe a vida. Foi visitado por dignitários e instado a submeter-se ao concílio. Brilhantes perspectivas lhe foram apresentadas como recompensa. GCC 52.6

“Provai-me pelas Sagradas Escrituras que estou em erro, e abjurarei”, disse ele. GCC 52.7

“As Sagradas Escrituras!” exclamou um de seus tentadores. “Então tudo deve ser julgado por elas? Quem as pode entender antes que a igreja as haja interpretado?” GCC 52.8

“São as tradições dos homens mais dignas de fé do que o evangelho de nosso Salvador?” replicou Jerônimo. GCC 52.9

“Herege! Arrependo-me de ter-me empenhado tanto tempo contigo. Vejo que és impulsionado pelo diabo.”17. GCC 52.10

Sem demora foi levado ao mesmo local em que Huss rendera a vida. Ele fez o trajeto cantando, tendo o semblante iluminado de alegria e paz. Para ele, a morte havia perdido o terror. Quando o carrasco, estando para acender a fogueira, passou por detrás dele, o mártir exclamou: “Ponha fogo à minha vista! Se eu tivesse medo, não estaria aqui.” GCC 53.1

Suas últimas palavras foram uma oração: “Senhor, Pai todo-poderoso, tem piedade de mim, e perdoa os meus pecados; pois sabes que sempre amei Tua verdade.”18. As cinzas do mártir foram reunidas e, tal como ocorrera com as de Huss, lançadas ao Reno. Assim pereceram os fiéis porta-luzes de Deus. GCC 53.2

A execução de Huss acendera uma chama de indignação e horror na Boêmia. A nação inteira declarou ter sido ele um fiel ensinador da verdade. O concílio foi acusado de assassinato. Suas doutrinas atraíam agora maior atenção do que antes, e muitos foram levados a aceitar a fé reformada. O papa e o imperador uniram-se para aniquilar o movimento, e os exércitos de Sigismundo foram lançados contra a Boêmia. GCC 53.3

Surgiu, porém, um libertador. Zisca, um dos mais hábeis generais de seu tempo, foi o chefe dos boêmios. Confiando no auxílio de Deus, o povo resistiu aos mais poderosos exércitos que contra ele se poderiam levar. Reiteradas vezes o imperador invadiu a Boêmia, apenas para ser repelido. Os hussitas ergueram-se acima do temor da morte, e nada poderia resistir a eles. O bravo Zisca morreu, mas seu lugar foi preenchido por Procópio, que em alguns sentidos era um líder ainda mais capaz. GCC 53.4

O papa proclamou uma cruzada contra os hussitas. Uma imensa força foi lançada contra a Boêmia, tão-somente para sofrer terrível derrota. Outra cruzada foi proclamada. Em todos os países papais da Europa, homens, dinheiro e munições de guerra foram reunidos. Multidões congregavam-se sob o estandarte papal. GCC 53.5

A numerosa força entrou na Boêmia. O povo arregimentou-se para repeli-la. Os dois exércitos se aproximaram um do outro, até que havia entre eles apenas um rio. “Os cruzados constituíam força grandemente superior, mas em vez de se arremessarem através da torrente e travar batalha com os hussitas a quem de longe haviam vindo combater, ficaram a olhar em silêncio para aqueles guerreiros.”19. GCC 53.6

Subitamente, misterioso terror caiu sobre os soldados. Sem desferir um golpe, aquela poderosa força debandou e espalhou-se, como que dispersa por um poder invisível. O exército hussita perseguiu os fugitivos e imenso despojo caiu na mão dos vitoriosos. A guerra, em vez de empobrecer os boêmios, enriqueceu-os. GCC 53.7

Poucos anos mais tarde, sob um novo papa, promoveu-se ainda outra cruzada. Vasto exército entrou na Boêmia. As forças hussitas recuaram diante deles, arrastando os invasores cada vez mais para o interior do país, levando-os a contar com a vitória já alcançada. GCC 53.8

Finalmente o exército de Procópio avançou para dar-lhes combate. Quando se ouviu o ruído da força que se aproximava, mesmo antes que os hussitas estivessem à vista, um pânico de novo caiu sobre os cruzados. Príncipes, generais e soldados rasos, arrojando as armaduras, fugiram em todas as direções. A derrota foi completa, e novamente um imenso despojo caiu nas mãos dos vitoriosos. GCC 54.1

Assim, pela segunda vez, vasto exército de homens aguerridos, treinados para a batalha, fugiu sem dar um golpe, diante dos defensores de uma nação pequena e fraca. Aquele que pôs em fuga os exércitos de Midiã diante de Gideão e seus trezentos, uma vez mais estendera Sua mão. Juízes 7:19-25; Salmos 53:5. GCC 54.2

Traídos pela diplomacia — Os líderes papais recorreram finalmente à diplomacia. Adotou-se um compromisso mútuo que, traindo aos boêmios, entregou-os ao poder de Roma. Os boêmios haviam especificado quatro pontos como condições de paz com Roma: (1) livre pregação da Bíblia; (2) o direito da igreja toda, tanto ao pão como ao vinho na comunhão, e o uso da língua materna no culto divino; (3) a exclusão do clero de todos os ofícios e autoridades seculares; e (4) nos casos de crimes, a jurisdição das cortes civis tanto para o clero como para os leigos. As autoridades papais concordaram que os quatro artigos fossem aceitos, “mas que o direito de os explicar [...] deveria pertencer ao concílio — ou, em outras palavras, ao papa e ao imperador”.20. Roma ganhou, pela dissimulação e fraude, o que não tinha conseguido pelo conflito. Aplicando sua própria interpretação aos artigos hussitas, como à Escritura Sagrada, poderia perverter seu sentido, de modo conveniente a seus propósitos. GCC 54.3

Uma classe numerosa na Boêmia, vendo que isso traía sua liberdade, não se conformou com o tratado. Surgiram dissensões, que levaram à contenda entre eles próprios. O nobre Procópio sucumbiu, e acabou a liberdade da Boêmia. GCC 54.4

Exércitos estrangeiros invadiram de novo a Boêmia, e aqueles que permaneceram fiéis ao evangelho foram sujeitos a uma perseguição sanguinolenta. Contudo, sua firmeza era inabalável. Obrigados a refugiar-se nas cavernas, congregavam-se ainda para ler a Palavra de Deus e unir-se em Seu culto. Por meio de mensageiros enviados secretamente a diversos países, souberam “que entre as montanhas dos Alpes havia uma antiga igreja, apoiada no fundamento das Escrituras e protestando contra as corrupções idolátricas de Roma”.21. Com grande alegria iniciou-se correspondência com os cristãos valdenses. GCC 54.5

Firmes no evangelho, os boêmios esperaram através da noite de sua perseguição, ainda volvendo os olhos para o horizonte na hora mais tenebrosa, semelhantes aos homens que esperam a manhã. GCC 54.6